obra escrita por
YAGO TADEU

A

ESCUTANDO URUBUS

A vida não é nada viva
A vida já é quase morte
Morremos tantas vezes em vida
Que morrer de fato já não soa forte.

A

Dérick se levantou da cadeira amedrontado com a ameaça de Lisbela. Virou as costas para ela e praticamente fugiu saindo da casa. Foi até o carro sem acreditar na ameaça e sem acreditar no medo dominante que o deixara tão nervoso após ver os objetos voarem e se espatifarem na parede sozinhos como quando são arremessados. Quem é essa mulher? Afinal, o que ela é?

— Priscila, Ítalo.- disse a si mesmo concluindo que deveria procurar os dois o mais rápido possível.

Lisbela apareceu na porta da casa e cruzou os braços direcionando o olhar para o veículo.

— Desgraçada.- Dérick virou o veículo rápido e entrou na trilha o mais rápido que pôde sendo fuzilado pelo olhar de Lisbela.

Ítalo lançou a terceira pedra no rio e dessa vez não teve bom resultado. Ela pouco pingou e afundo no segundo pulo. Priscila sorriu e arremessou a pedra bem redonda que passou da metade do lago com facilidade deixando o filho em estado de derrota.

— É, não foi dessa vez Ítalo.- Ítalo retribuiu o sorriso já bem mais calmo.

— Vamos aproveitar pra entrar no lago?- Priscila brincou curiosa pela resposta.

— Eu tenho medo de crocodilos.- A mãe riu e ajeitou seu cachecol.

— Não há crocodilos nesse lago.- disse a mãe esboçando uma certa dúvida no fim da afirmação.

— Nós não vamos saber se não entrarmos.- Ítalo disse á mãe.

Priscila e o filho fitaram o lago sem acreditar que realmente pudesse existir algum animal perigoso ali. Em poucos minutos seus pés já tocavam as águas e o sol ajudava a amenizar a temperatura do lago. Agora sentiam-se mais leves. Mergulhos e guerras de água faziam parte daquele banho como um grande reencontro entre duas pessoas que estiveram tão próximas e ainda assim distantes de um amor mais forte.

— Pára mãe.- pediu Ítalo enquanto Priscila jogava água nele.

— Vou mergulhar um pouquinho nesse lago raso, fique aqui que você não sabe nadar.

Ítalo se encolheu com os cabelos lisos jogados no rosto e uma expressão de frio.

— Mãe eu vou pegar minha camiseta.- avisou Ítalo aproximando-se das margens.

Ítalo pegou a camiseta sobre a grama e a sacudiu da terra.

— Se divertindo garoto?- o velho deu um susto e coração dele disparou.

— Mãe!- chamou quase gritando. Priscila voltou á superfície e Stephen abriu um sorriso faceto.

— Está se divertindo garoto?- o dente de ouro brilhou como ferrugem velho.

— Olá.- Priscila o cumprimentou pelo garoto – Senhor Stephen.

— Olá senhora Priscila ou senhorita, já não sei mais dizer.- Stephen sorriu malicioso.

Priscila saiu da água mais rápido do que sairia normalmente. Stephen lhe causava um estranho incômodo.

— Acho que já está na hora de ir Ítalo.- Priscila lançou um olhar inseguro para o filho.

— Espera, onde vai?- Stephen segurou seu braço e Ítalo olhou com medo.

— Solte minha mãe!- Ítalo disse com os lábios pálidos.

— Por favor Stephen.- Priscila encarou o senhor de barba negra exigindo respeito. Ela se soltou do braço dele e o olhar de Stephen mudou.

— Acalme-se senhora.- Stephen tirou o chapéu exibindo o cabelo calvo.

— Não toque mais em mim, eu não vou repetir mais.- Priscila segurou a mão do filho e saiu dali seguindo a trilha de terra.

O velho a observou partir passando a língua entre os dentes como um selvagem.

— Daqui a cinco dias eu acerto tudo com Lisbela.- Priscila colocou o braço carinhosamente sobre o ombro do filho – E então me despedirei dela e voltaremos á Zellwéger.

O filho sentiu-se aliviado e feliz com a decisão da mãe. Quem sabe assim ainda haja uma esperança para o casamento deles. Ítalo estava esperançoso.

A porta da casa foi aberta e Priscila se deparou com Lisbela sentada serenamente numa cadeira de balanço.

— Desculpe Lisbela, eu acabei me empolgando com Ítalo e esqueci do almoço.

Lisbela tirou os óculos de leitura e o colocou junto ao livro que lia em cima do sofá. Priscila aguardava uma resposta.

— Vocês já almoçaram?- perguntou apreensiva com a reação silenciosa da patroa.

— São uma da tarde agora. Uma da tarde eu não almoço, uma da tarde meus filhos não almoçam, uma tarde ninguém almoça.- Lisbela a olhou neutra – Não há almoço uma da tarde.

— Desculpe mesmo Lisbela. Eu prometo que isso não vai se repetir.

— Sim, o que eu posso fazer além de desculpar? Sorrir.- disse dando um artificial sorriso – Coma com seu filho e tampe as panelas.

Priscila não gostou do que acabava de escutar. Sem mais palavras carregou Ítalo para a cozinha.

— Porque ela parece com raiva mãe?- Ítalo sentou á mesa.

— Não sei filho, Lisbela tem seus momentos.- disse Priscila buscando a concha de feijão na gaveta.

Ítalo olhou para a janela e sentiu no mesmo instante falta do pai.

Após passar pelo parque, pelo celeiro e pela igreja, Dérick quase desistia de procurar Priscila. Talvez já estivesse na casa. Esse era o pior. O seu medo de perder Priscila crescia.

— Ela não é normal. – Dérick pensava alto desorientado na vila – Ninguém aqui é normal. – Dérick fugia de todos os moradores com faces ríspidas e sombrias que passavam por ele. Dérick pareceu ouvir a voz de Priscila e o sopro do vento deixava sua mente mais conturbada.

— Priscila?- ouviu mais uma vez a voz da esposa vindo de uma das casas.

Foi até a casa e invadiu se deparando com uma grande escuridão na casa. Estava fria, seca e de penumbras obscuras.

— Priscila?- Dérick entrou na casa lentamente se envolvendo na escuridão.

O lampião acendeu repentinamente e Dérick se virou para a mulher.

— O que está fazendo na minha casa?- senhorita Emily indagou.

— Onde está Priscila?- perguntou Dérick assustado.

— Não sabe onde está sua mulher?- senhorita Emily ligou a panela de pressão e ele se eriçou olhando alarmado para a panela – Não sabe onde se enfiou sua esposa senhor Dérick Rafael?- Dérick estendeu a mão e veloz pegou a grande faca em cima da pia.

— Não se aproxime de mim.- Dérick apontava a faca suja com sangue de fígado para Emily. Ele estava sem controle.- Não chegue perto de mim. Para trás! – ameaçou com a faca em mãos.

O barulho da panela de pressão aumentava cada vez mais, mais e mais o ensurdecendo de agonia.

— O que vai fazer com essa faca?- senhorita Emily deu uma risada de escada próximo a ele.

Dérick correu carregando a faca consigo. Saiu da casa quase tombando e percebeu que já escurecia. Quanto tempo procurei por Priscila e não percebi? Dérick entrou no carro e saiu de lá encaminhando-se rapidamente para a trilha de terra.

— Priscila.- ele lamentou o tapa que havia dado na esposa – Eles vão te pegar.

Dérick diminuiu a velocidade perto do celeiro próximo do parque ao escutá-la. Ouviu a voz da esposa e parou o carro.

— Priscila?- ele desceu do carro e foi até a porta do celeiro. Começava a chover gotas grossas e o céu indicava uma tempestade.

Ele abriu a porta do celeiro e continuou a escutar a voz da mulher.

— Priscila.- chamou penetrando na escuridão do celeiro.

Dérick.- a voz suave feminina o chamava.

Ele tinha uma faca em mãos, não tinha nada a temer. Observou uma manta branca se mexer. Era lá de onde vinha voz.

— Priscila?- os olhos de Dérick se arregalaram quando o gigante urubu de bonitas asas negras saiu debaixo da manta e levantou as asas encarando Dérick nos olhos.

Dérick.- o urubu falava com a voz de Priscila – Preciso te contar uma coisa.

Dérick se horrorizou. Sua reação foi congelar como uma estátua.

Preciso te contar algo.- a voz do urubu engrossou de repente e ele voou até o teto do celeiro.

Dérick olhou para o teto e não enxergava nada além de um escuro interminável. Ameaçou correr quando uma fileira de lampiões acenderam dos dois lados do caminho. Seus olhos se voltaram para o teto novamente. Sua expressão se tornou estarrecida. Uma nuvem repleta de urubus cobria sua cabeça. Ele correu ou ameaçou correr quando os urubus o cercaram. Facadas e mais facadas sobre eles e nada acontecia. Porque nada acontecia? Porque não iam embora?

— Afastem-se.- gritou para os pássaros tentando os golpear. Suas lágrimas já escorriam até os lábios quando jurou ter visto os pássaros mudarem de cor. Quando jurou ter visto reflexos de sua vida neles. Dérick fugiu de seu passado, fugiu de sua miséria, de seus infortúnios e de suas piores dores.

— Me deixem em paz.- Dérick se jogou na lama sentindo a gravidade de seu passado o arremessar no solo. A chuva o cobriu o impedindo de se erguer diante das fracas pernas que já não podia sustentar. Pôde se arrastar, isso a vida lhe deu de graça, o direito de se arrastar sempre que preciso. Ele segurou a faca com as poucas forças que restava e se equilibrou de pé lutando contra a tempestade.

— O macarrão está ótimo.- elogiou Lisbela colocando a panela em cima da mesa.

Priscila não respondeu e Lisbela a fitou com os olhos bem abertos.

— Seu marido já vai chegar.- disse Lisbela arrumando a mesa do jantar.

— Estou preocupado.- Ítalo demonstrou inquietação na mesa.

— Seu pai deve estar bem, estava de carro.- Priscila tentou acalmá-lo e se tranquilizar.

Anne chegou á cozinha junto de Andy e parecia haver algo de errado.

— Andy?- questionou Lisbela notando sua perna enfaixada. Priscila olhou para a perna dele – O que aconteceu Andy?- Lisbela se agachou e tocaria em sua perna quando ele se afastou.

— Não toque, está dolorido. O enfermeiro enfaixou depois que ele perfurou minha perna.

— Ele quem?- indagou Lisbela. Andy lançou um olhar para Ítalo e abaixou a cabeça em seguida.

— Eu não posso contar, ele está me ameaçando.- Andy simulava olhos aflitos.

— Você deve contar Andy.- incentivou Priscila assustada com aquele ato – Quem fez isso com você?

— Não posso falar, depois do jantar eu conto.- prometeu Andy lançando mais um olhar para Ítalo que permanecia calado – Eu prometo que vou contar.

— Machucou muito?- perguntou Lisbela.

— Não.- Andy parecia assustado.

— Seja quem for vai pagar pelo que fez. Nós vamos jantar e você vai contar essa história desde o início.

Andy balançou a cabeça positivamente e sentou na mesa para jantar. Anne o acompanhou.

— Coma mocinha.- Lisbela percebeu que Priscila nem tocava na comida.

— Eu vou comer.- Priscila estava muito preocupada quando escutou o som do veículo.

— Deve ser meu pai.- disse Ítalo sentindo-se aliviado.

— Espere aqui Ítalo, está chovendo.- Priscila mandou.

Lisbela fitou a mãe e filho na mesa e voltou a garfar o macarrão.

A maçaneta da porta girou. Vou tirar minha mulher daqui nem que isso custe a minha vida.Dérick abriu a porta. Seja quem ela for, eu vou desmascará-la. Dérick chegou na entrada da cozinha.

— Pai?- Ítalo se assustou ao ver o estado em que ele se encontrava.

— Dérick, o que aconteceu?- Priscila estava atônita.

Dérick estava encharcado, os cabelos escorridos para trás e pálido como um cadáver. A faca em sua mão escorria gotas da chuva no chão. Andy levantou com tudo derrubando um copo de vidro da mesa e deixando em estilhaços no chão.

— Maldoso.- Andy gritou quando Lisbela o segurou – Monstro! Maldoso!

— O que foi Andy?- questionou Lisbela quando os olhos de Dérick se acenderam.

— Foi aquela mãe!- disse em voz alta – Foi aquela faca que ele tentou cravar no meu pé.

Ítalo arregalou os olhos. Anne estava inerte. Lisbela forçou o olhar para a faca,úmida reluzia. Priscila não conseguia acreditar.

— O quê?- indagou olhando assustada para o marido.

Dérick parecia ter levado um novo choque. A faca tremia em mãos quando seu rosto envidraçou.

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