Jade está em silêncio, dentro do carro em movimento. Ela contempla a paisagem de uma madrugada sombria. Os últimos meses foram intensos. No começo tudo parecia um borrão em sua memória, mas depois do sufoco no bunker, as coisas ficaram claras em sua mente.  

Mesmo sem saber para onde estava indo e o que iria encontrar, ela tinha a sensação de que tudo ficaria bem. Uma certeza inabalável, profunda e inexplicável de que na verdade o pior já tinha passado, agora era a bonança depois da tempestade. 

Ainda que os fatos fossem pessimistas, ela cria que tudo ficaria bem e as peças iriam se encaixar em seus devidos lugares. 

Ao olhar para Babemco, sentado no banco da frente ao lado do motorista, Jade imaginava se existia alguma centelha de humanidade naquela criatura. Será que ele se arrependeu de tudo que fez? Será que existia remorso? Ou será que agora, tão perto da morte, Babemco estava com medo? Medo do desconhecido, medo de entrar em um reino que ele nunca havia pisado, medo do sofrimento eterno? 

Será que ele acreditava no inferno ou no paraíso? Ela precisava saber o que tinha dentro daquele homem. 

— O que você sente, agora? — Jade perguntou em um tom de voz neutro, quase demonstrando algum tipo de empatia. 

Babemco virou-se e encarou a mulher. Seus olhos estavam vermelhos e cansados, ele estava aos poucos, sendo derrotado pelo câncer. 

— Eu sinto saudade — ele respondeu, virando-se para frente e pondo os olhos na estrada adiante. 

— Saudade de quem? 

Ele deu um leve sorriso. — Não é de alguém específico. Mas, é saudade de um tempo. Uma época específica. Saudade da infância. 

Ao olhar mais uma vez para o homem, Jade teve flashes de Lucas suspenso na corda e agonizando asfixiado. Ela sentiu raiva, mas sabia que precisava esconder esse sentimento se quisesse examinar o criminoso.  

— Você trata o ser humano como um autômato e ainda sente saudade. Você nunca se perguntou se tinha algum problema? Tentou se tratar? 

— Eu confesso que não sinto como a maioria sente. Meus sentimentos são pequenos raios que nascem, mas rapidamente são suplantados pela escuridão que me domina. O desejo da morte é mais forte. Eu não posso dizer que sinto muito pelo que fiz. Eu estaria mentindo. A verdade é que eu não consigo pensar em mais ninguém que não seja eu. Mas, a morte me fez pensar em salvar a minha filha. Somente ela pode continuar o meu legado. 

Esse era o momento crucial. Era o momento que definiria tudo de agora em diante. O momento em que o pequeno raio de luz dentro de Babemco precisaria continuar brilhando e ele teria que matar seu eu para que Yeda pudesse sobreviver e tudo terminasse bem. 

— Todos nós sabemos o que o Logan quer, Babemco. Eu perdi tudo pelo caminho. Eu fui ferida de todas as formas. Você tirou a minha dignidade, minha honra, manchou meu nome. Matou meu esposo, tirou minhas posses, meus amigos e quis tirar o meu bem mais precioso: o Cícero. Mesmo assim, eu me entreguei por completo e quase dei cabo à minha vida para salvar meu filho. Se tudo isso não te diz nada, então eu preciso traduzir: é hora de renunciar a todo o seu império para salvar sua vida. É hora de pensar em alguém que não seja você. Eu sei que é algo impossível para você, mas a vida está te pedindo esse sacrifício, e ela não vai te dar outra chance. Eu tô disposta a renunciar meu cargo pra salvar vidas. Eu não fui totalmente curada dos meus traumas, mas eu aprendi a olhar para o outro e confiar. Aprendi a me sacrificar pra salvar quem eu amo. É a sua vez. E, eu sinceramente espero ter ajudado. 

Uma lágrima cai do olho de Jade. Dentro de si, ela luta contra o ódio. É o remédio mais amargo que ela pode tomar: tentar ajudar um monstro sem sentimento. 

** 

O hotel de beira de estrada é o palco para a última reunião. O quarto é amplo, tem paredes brancas e descascadas pelo mofo, e uma luz amarela brilha de um abajur que está sobre a cômoda ao lado da cama.  

O delegado Humberto é o primeiro a entrar. Ele empurra a porta devagar e contempla uma mesa redonda com sete cadeiras ao redor. Logan, Yeda e Capeto estão sentados. Sobre a mesa um notebook. 

— Sentem-se por favor. É hora de fazermos negócios. — Logan declara, calmo. 

Ele não é dramático como o Babemco. Seu único objetivo é tomar o que é seu de fato. 

Jade senta ao lado do delegado, enquanto Babemco fica perto de Mônica.  

— Quero agradecer por atenderem o meu chamado — Logan inicia. — Espero que tudo se resolva de forma rápida e satisfatória para todos. 

— Você é um idiota, Logan — o delegado diz irritado. 

— Faz tempo que eu não me importo com o que eu sou. Só o importa o que eu tenho. É disso que essa reunião se trata. O que eu tenho, ou o que eu vou ter — Logan fala, sem emoção. 

— Como você está, minha filha? — Mônica pergunta, encostando a mão sobre a mão de Yeda. 

— Eu tô bem, mãe. Sinto muito por ter que passar por isso — Yeda responde, cautelosa. 

— Chegou a hora em que todos temos que ceder. Hora do sacrifício — expondo a tela do notebook para todos que estão na mesa. 

— O que é isso? — pergunta Humberto. 

— Não existe glória sem sacrifício. Isso é um contrato que vocês vão assinar — Logan responde, mostrando a tela do notebook. 

— O que você quer. Logan? — Babemco pergunta, sério. 

— Todas as ações que pertencem a Babemco. Todo o seu dinheiro, imóveis, veículos, tudo que tiver o nome de Babemco. A Prime, a presidência definitiva da Prime, TUDO o que for do Babemco deve pertencer a mim — o hacker bate no peito. 

Babemco bate os dedos sobre a mesa, incomodado. 

— Além disso, o delegado Humberto vai assinar o acordo me inocentando de todas os crimes cometidos na mansão do Babemco, as explosões e qualquer crime do qual eu tenha sido acusado — Logan continua. 

O delegado sorri, indignado.  

— A prefeita vai assinar o acordo de exclusividade da gestão com a Prime, onde nós seremos a única empresa contratada a prestar os serviços de segurança. 

Jade interrompe o homem: — Se você tivesse conversado, saberia que a prefeitura sempre teve a intenção de trabalhar com a Prime. Porém, esse seu acordo, agora só vai pra frente quando vocês retirarem as bombas das câmeras — Jade fala, confiante. 

— Eu não sei se isso é possível…— Logan começa, mas Jade levanta e o interrompe. 

— Não vai existir acordo comigo se as bombas não forem retiradas, entendeu? Você quer o contrato? Então vai ter que tirar as merdas das bombas uma a uma, você entendeu ou quer que eu desennhe? — a mulher fala com as mãos sobre a mesa e quase encostando a testa na cabeça do hacker. Ele fica intimidado. 

Todos permanecem em silêncio olhando para Jade. Logan parece não acreditar na condição. 

— Tudo bem. As bombas serão retiradas — Ele diz, vencido. 

Jade encara Babemco: — Vamos, acaba logo com isso. 

Humberto suspira, encarando Logan: — Você vai pagar uma multa e a justiça pode te liberar. Uma multa milionária, e eles vão esquecer que você foi cúmplice de Babemco.  

Logan tenta falar, mas Humberto o interrompe: — Sacrifícios Logan, e não se fala mais nisso. 

Capeto encara Babemco. — E você, amigo, o que nos diz? 

Babemco suspira: — Essa é a punição que você imagina para mim, Logan? 

— Não! Eu nem me dei ao trabalho de imaginar um castigo para você. Ser quem você é, já deve ser o grande castigo. Afinal, você é o inferno, não é? — Logan incita. 

— Tudo bem. Eu concordo em te dar todas as minhas posses. Tudo o que eu tenho. Sua missão é me deixar morrer sem nada e sem ninguém. Então, você conseguiu — o moribundo confessa. — Só me deixem dizer algo para a Yeda. 

Todos ficam em silêncio encarando Yeda. 

Ela assente com a cabeça. 

— Eu e Logan abrimos a Prime com a intenção de sermos uma grande empresa de segurança. Na época que eu paguei seus estudos, não havia nenhuma atividade ilícita. Nós só queríamos prosperar de forma honesta. Sei que é difícil acreditar, mas o Logan pode confirmar o que eu disse, não é mesmo Logan? 

Yeda observa o hacker. Todos esperam por uma resposta.  

— Enfim, uma verdade. Seu pai pagou seus estudos com dinheiro honesto — Logan diz com um sorriso sarcástico. 

— Eu trouxe isso para você, Yeda — Babemco diz estendendo a mão e colocando o distintivo da polícia civil diante da ex-delegada. — O seu pai gostaria que você voltasse à atividade. Você conquistou a polícia com seus méritos. Nada pode desabonar a sua conquista.  

Yeda segura o distintivo e seus olhos enchem de lágrimas. 

Logan levanta. 

— Temos um fim? 

Jade concorda, Babemco concorda e Humberto também. Yeda guarda o distintivo no bolso. 

— Foi um prazer negociar com vocês — Logan sai, seguido por Capeto. 

Babemco olha para Humberto e pede: — Eu preciso de um minuto sozinho, pode ser?  

O delegado assente com a cabeça e deixa o quarto. 

Babemco olha para Yeda: — Você é tudo o que eu não fui, e isso é maravilhoso. 

Ela continua encarando o homem. 

— Espero que você encontre paz para onde for — ela fala, dando as costas para o pai e deixando-o sozinho. 

Babemco vai até a janela e observa o sol nascendo. Ele dá um último suspiro e morre. 

** 

Jade bate três vezes antes de alguém abrir a porta. Morgana toma um leve susto ao notar a presença da mulher. Leia se aproxima carregando o pequeno Roberval, seu neto.  

Jade fica ali fora olhando os três dentro da casa. Leia põe a mão sobre o ombro da filha. Morgana continua encarando Jade. 

Foi ali, naquela posição que Jade estendeu a arma e atirou em Roberval. Os flashes retornam à memória de Morgana.  

Morgana abre os braços e espera o abraço. Jade em prantos, se aproxima da garota e se entrega ao acolhimento que ela oferece. Ela enfim entra na casa.

— Eu tô bem — Morgana fala, enquanto aperta a mulher. 

— Me perdoa? 

— Eu te perdoou — Morgana diz, derramando lágrimas. — Obrigada por nos salvar. 

— Eu faria tudo de novo. 

Leia sorri ao ver as duas abraçadas. Outro ciclo se encerra. 

** 

Fazenda Esperança. Manhã.

Licurgo está terminando de tomar o seu café quando escuta o som do motor de avião. É Jade e ela não está sozinha. 

O cesna pousa no descampado próximo e a mulher corre com o pequeno Cícero que já tem quatro anos.  

Licurgo abraça Jade e os dois sentam na varanda da casa.

— Você conseguiu voltar pra sua fazenda! — Jade brinca com o fazendeiro.

— Graças a Deus! — ele responde. — Você sente que as coisas nunca tem fim? — Licurgo pergunta para a amiga. 

— Sim. Viver é um eterno ciclo. Só a morte pode dar fim a essa experiência — Jade responde sorridente. 

— Eu queria ter palavras para descrever o que é viver. Os medos, traumas, o divino e as sombras que nos cercam. Tem coisas que não dá para explicar, não dá pra entender. — Licurgo reflete.

Um carro da polícia de Monte Verde se aproxima. É a delegada Yeda que traz consigo Victória, sua assistente jurídica. 

As duas mulheres saltam do carro, corajosas e decididas. 

— Que vida boa, hein? — Yeda brinca. 

— Por um pouco de tempo, sim! — Licurgo diz. 

— Fizemos por merecer. Mas, os novos desafios virão, e eles tem que ser muito grandes pra derrotar a gente — Victória reflete. 

— É isso mesmo! A vida tem que mandar um gigante enorme pra me derrubar. Eu passei pelo fogo e sobrevivi — afirma Jade. 

— Nós passamos e sobrevivemos — Yeda corrige. 

— E quem diria que no princípio estaríamos aqui?  

Cícero se aproxima e Jade o toma nos braços.  

— Eu amos vocês. E passaria tudo novamente pra tê-los por perto e bem — ela afirma. 

— É sobre isso! — Cícero diz, arrancando gargalhadas de todos. 

 

FIM

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