Naquela noite, o Flamengo havia vencido o Coríntias. Morgana comemorava com o seu pai na sala de estar. Roberval brincava com a filha e fazia danças esquisitas que só os dois compreendiam. Ela sorria e pulava comemorando sete anos de vida.  

Todavia, foi naquela mesma noite que Morgana viu seu pai abrir a porta da sala, dar de cara com Jade e ouvir um disparo. Um único disparo de uma arma de fogo que fez seu pai cair com um baque seco e morrer instantaneamente.  

Apesar dos gritos, seu pai não abriu mais os olhos.  

Morgana chegou a chacoalhar o corpo inerte de Roberval, mas ele não reagia. Seu pai sempre fora muito ativo, ela sabia que ele não estava bem. A poça de sangue que se formou ao redor da cabeça. Ela sabia que aquilo não era nada bom. 

Sua mãe correu desesperada. Choro, grito, agonia. Era um verdadeiro furacão emocional percorrendo toda a casa.  

Os vizinhos tentaram prestar socorro mas já era tarde. 

Roberval estava morto. 

Morgana era órfã. 

 

EPISÓDIO: SOMBRAS DO PASSADO

 

Dez anos após a morte de Roberval e o que sobrou da família era uma vaga lembrança de estabilidade. Morgana não conseguia estudar direito, comer, viver normalmente. A ausência do pai, o vazio e o buraco que se formou em seu peito, lhe impediam de pensar corretamente. O mundo agora era um nada sem significado. Pessoas perigosas e irresponsáveis que matavam sem razão, vidas destroçadas pela violência.  

Morgana ficou sabendo da história de Jade. Soube que ela foi estuprada pelo irmão de Roberval, o seu tio. E, que por um engano, matou o seu pai achando que matava seu tio. 

Roberval não havia saído de casa naquela noite. Ele emprestou sua carteirinha de torcedor para o irmão, e o irmão, violentou Jade. 

Ela, pegou a carteirinha de Roberval e acreditando ser ele o seu algoz, foi até a sua residência e o matou.  

Nove anos na cadeia. Esse foi o tempo de pena para Jade. Morgana sempre achou insuficiente. Ela deveria ficar mais tempo. Deveria apodrecer na prisão. Não era justo. 

Mas, o que mais chocou Morgana foi ver na TV, Jade chorando e admitindo que matou outras pessoas. Como uma mulher dessas ainda tinha palco? Como as pessoas podiam acreditar e dar voz para uma assassina? 

“Ela destruiu minha família, e ninguém deveria ter piedade. Ela matou o meu pai, um homem inocente, ela não deveria ao menos falar”, pensava Morgana, vendo Jade gaguejar no Programa do Dial. 

“Mas, o que ela quer afinal?”, questionou-se Morgana. Foi então que ela descobriu que Jade estava em busca do seu filho. Ela acusava Babemco de ter sequestrado o bebê. 

Agora, no auge dos seus dezoito anos, Morgana precisava agir e garantir que de alguma forma a justiça fosse feita. Nem que para isso ela precisasse machucar alguém. Ela estava disposta a tudo. 

Naquela manhã, Morgana foi a primeira a acordar. Na verdade, ela mal havia dormido diante de tamanha ansiedade que tomava sua mente.  

Depois de finalizar algumas tranças em seu cabelo, pôr um boné que carregava seu nome e usar uma blusa sem mangas que lhe deixavam mais à vontade, ela foi até à cozinha e tentou organizar a papelada que estava sobre a mesa. 

Eram arquivos da polícia, fotos de Jade, recortes de jornais sobre Babemco, Marieta e os relatos sobre o Complexo Fantasma. Morgana juntou tudo que podia para entender toda a situação.  

Léia, sua mãe, apareceu ainda com roupa de dormir. A mulher tinha traços árabes com cabelos negros e longos, olhos fundos e nariz alongado. A tristeza acompanhava Léia, que por muito tempo só conseguia dormir com ansiolíticos.  

— Fazia tempos que eu não te via tão empolgada com um projeto — disse Léia, cobrindo os ombros com sua manta. 

— Pensei que sua maior preocupação fosse com a pensão, ou com remédios?! 

— Me preocupo com os problemas atuais. O passado já foi enterrado. O passado já foi condenado. Não devemos mexer com ele. 

— O passado não foi bem resolvido. Eu não resolvi esse problema dentro de mim. E, não, o passado não pagou sua pena corretamente — revidou Morgana. 

— Eu vou preparar um café. Espero que mexer com essa merda toda, não prejudique seus estudos. O enem vem aí — relembrou Léia. 

Sobre a mesa, uma foto de Jade se destaca. Morgana pega uma faca afiada e espeta a foto com força.  

Quando Jade acordou, sentiu o cheiro de banana assada que percorria toda a casa. Rapidamente foi à cozinha e testemunhou sua mãe correndo de um lado para o outro preparando o café. 

Jade ainda sonolenta, sentou-se e puxou assuntou: — Amo esse cheirinho. 

Ivete, uma mulher loira na casa dos cinquenta, era rígida e muita ágil em tudo. Sem parar de mexer os ovos na frigideira, disse: — Eu ia levar o café na sua cama. Lembra quando tomávamos café na cama, nos finais de semana? Você amava! 

Jade sorri com a lembrança. — Era tudo maravilhoso, até eu derrubar suco no lençol. 

— Ai como eu odiava isso! Você não conseguia não sujar tudo! 

— Bons tempos — Jade disse saudosa. 

As duas se sentaram à mesa e começaram a comer.  

— Fico feliz que enfim você saiu do quarto. 

— Eu me sinto melhor. Não posso enterrar meus dias em uma depressão sem fim — reconheceu Jade. 

— Eu vi que você juntou as roupas do Cícero. O que você está planejando? 

— Eu pensei em doar. Mas… 

Ivete comeu mais um pedaço da torrada, enquanto aguardava Jade continuar sua história. Porém, ela não prosseguiu. 

— Mas, o quê? — incitou Ivete. 

— Não posso desistir do meu filho. Eu conheci alguém que pode me ajudar a achar o Cícero. 

— Quem? 

— Ele é um hacker. Foi sócio do Babemco e agora quer tomar a Prime para ele.  

— Eu quero muito ter meu neto de volta, mas a que custo? Seu esposo está desaparecido. Sua sogra, presa. E, você foi caluniada na TV e nas redes. Mexer com esse homem é um risco. O quanto que você está disposta a pagar pra ter seu filho de volta? 

— É até difícil ouvir isso, mãe! Eu não tenho mais nada pelo que viver. Minha família foi destroçada. Você acha mesmo que estou pensando no que perder?! O que eu tenho a perder ainda? — Jade se levanta revoltada. 

— Eu só não quero que você se machuque! 

— Que pena, mãe. Eu já fui machucada há muito tempo. Agora o que me resta é tentar machucar quem me machucou. Tenha um bom dia! — Jade diz, se retirando da mesa. 

A van azul de Logan estacionou diante da casa dos pais de Jade. Ela entrou rapidamente e cumprimentou o homem. Ele, estava com o cenho franzido e um olhar de desespero. 

— O que houve? — Jade perguntou, notando a ansiedade do racker. 

— Aconteceu que prenderam o Marcelo! 

— Como assim? Descobriram que hackeamos a Prime? 

— Não, não é isso! Parece que ele invadiu o sistema da Previdência Social e a polícia chegou nele.  

— Por que eu sinto que tem mais coisa aí?! 

— Droga! O Marcelo é o cara que vai abrir a merda do código fonte. Eu e o Brutus não temos conhecimento pra fazer o que é preciso. Precisamos do Marcelo, ou a Prime vai reiniciar o sistema e vamos ser ejetados. 

— Merda! — Jade fez uma ligação. Bruno atendeu. — Oi amigo. Preciso da sua ajuda! 

O sol estava à pino quando Bruno entrou na delegacia acompanhado de Jade. Ele andava confiante debaixo de um terno preto slin, gravata vermelha e óculos escuros. Os cabelos castanhos ondulados lhe davam um charme sedutor e o a costeleta farta tinha um aspecto de sobriedade e hombridade. 

Após se identificar no balcão, Bruno pediu para falar com seu cliente: Marcelo Paiva Arruda. Jade acompanhou todos os passos.  

Após entrarem em uma sala reservada. Bruno conversou com o detento e deixou tudo claro. 

— Você não vai falar nada a respeito desse caso. Eu vou pedir um habeas corpus e até o fim do dia você vai estar em casa — garantiu o jovem advogado. 

— Muito obrigado — disse Marcelo. 

— Agradeça a sua amiga, Jade. 

Ao saírem da sala, Jade e Bruno dão de cara com a delegada Yeda. 

— O que vocês estão fazendo aqui? — pergunta Yeda. 

— Ajudando um amigo — responde Jade. 

— E você, o que faz aqui? — pergunta Bruno. 

— Eu tô auxiliando o delegado Humberto nesse distrito. Se precisarem de ajuda, estou à disposição. Você tá bem, Jade? — perguntou a delegada. 

— Sobrevivendo — Jade respondeu com um sorriso sem graça. 

Os três se despediram. 

Algumas horas depois, Bruno recebe a ligação do técnico auxiliar do juiz. Jade percebe o semblante dele despencar. 

— O que aconteceu? — ela pergunta, preocupada. 

— Eu não entendo. Esse é o tipo de crime fácil de resolver. Mas, o juiz negou o habeas corpus.  

— Por quê? 

— Ele alegou que se trata de um crime federal e que o suspeito precisa ficar preso para não comprometer as investigações. Eu não entendo! 

Imediatamente, Jade ligou para Logan e deu a notícia. 

— Isso é uma merda! A Prime vai reiniciar o sistema e nós vamos perder o link — avisa o racker. 

— Quanto tempo ainda temos? 

— Não sei. Mais umas cinco horas talvez. Não mais que isso! 

— O que acontece se perdermos o link? 

— Definitivamente, nós nunca mais vamos entrar no sistema. Eles vão identificar a porta de entrada e bloquear tudo. Se nos acharem, é o fim.  

Jade finaliza a ligação e segura a cabeça pensando em uma solução. “Não dá pra voltar atrás!”.  

Uma moto fan 160 preta estaciona em uma rua deserta. Morgana desce da moto e prende o capacete no banco. Ela caminha entre as árvores e retira um binóculo da sua mochila. São três da tarde e ela senta em um banco atrás de uma folhagem. 

Do outro lado da rua, um jardim extenso acaba em uma mansão vitoriana, de fachada branca e colunas imponentes. É a mansão de Babemco, o alvo, o homem do momento. E, Morgana, através do binóculo, observa toda a movimentação do lugar. 

Até o momento, nada de mais acontece. Seguranças fortemente armados andam de um lado para o outro. Funcionários limpam o jardim, janelas, e a sacada. Aparentemente a harmonia reina no ambiente. 

Morgana continua intrigada. O que pode acontecer?  

Um carro para diante do portão externo. Há uma guarita ao lado do portão onde todos que entram se identificam. O veículo recebe autorização e avança o perímetro da casa. Para diante da mansão. Um homem de terno cinza desembarca carregando uma maleta preta. Ele parece desconfiado, olha para os lados e de cabeça erguida entra na mansão. 

Morgana fotografa o perfil do homem. Ela não o reconhece. Não é famoso, mas parece ter grana.  

“Isso é uma loucura. Não vai ter nada aqui pra mim. O que pode ter de suspeito?”, ela pensa. 

De repente, uma van branca estaciona diante do portão. Morgana observa a logo de um restaurante conhecido na cidade, o Cerejas, localizado em Boa Viagem. Alguns segundos se passam até que o portão é aberto. A van segue e para diante da mansão. Morgana fotografa tudo. 

Dois homens saltam da van carregando caixotes cheios de frutas e legumes. Aparentemente não é nada ilegal, mesmo assim, aquilo chama a atenção da garota.  

Depois de rabiscar algo em seu bloco de notas, ela volta a observar a movimentação dos homens carregando os alimentos para o interior. Aquilo pode ser algo. Pode ser uma porta de entrada para Morgana. 

Naquela tarde, a sede da Prime Security estava uma loucura. Funcionários engravatados corriam de um lado para o outro tentando responder acionistas, repórteres e a polícia. Os conselheiros se agruparam na sala de reunião e debatiam sobre o futuro da empresa. Os advogados tentavam juntar toda a documentação para montar uma defesa. 

Babemco entrou no ambiente acompanhado de três advogados e dois dos seus assessores. Ele parecia cansado. O semblante emburrado e entediado. 

— Nosso sistema foi invadido e não se preocupem. Os arquivos vazados provavelmente são falsos — ele declara. 

Cornélio toma a frente de todos e de forma arrogante diz: — Ninguém mais acredita nessas baboseiras que você fala! Os acionistas estão pressionando e nós vamos fazer uma moção para votarmos e te excluir do corpo societário! 

— Tudo bem! Vocês podem votar e me tirar da empresa. Mas, como vocês vão responder à mídia quando eles souberem que eu sou inocente e que não tenho nada com essas acusações infundadas. O que eu peço, é que tenham paciência. Eu estou investigando e vou descobrir quem invadiu nosso sistema e fraudou nossos arquivos. Somos uma família e precisamos confiar uns nos outros, não é isso? 

— Você tem dois dias para provar inocência. Se não trouxer nomes e provas dessa suposta fraude. Vamos votar e te excluir da Prime. Chega de escândalos! — determina Cornélio. 

A reunião acaba em um clima pesado. Babemco permanece parado observando a sala esvaziar-se. Seu legado está ameaçado. Ele precisa reagir. 

— Me leva pra delegacia — pede Babemco para o seu motorista. 

Jade entrou no hangar e viu todos os hackers trabalhando desanimados. Eles não conseguiam abrir o código fonte mesmo com a autorização que obtiveram com Marieta. A Prime, ao descobrir que foi invadida, subiu um sistema de bloqueio para impedir o acesso total. Agora, Logan e sua equipe lutavam para não perder o link e a oportunidade de ter o controle total do sistema da Prime. 

— Isso é uma merda! — Logan esbravejou enquanto esmurrava uma porta. 

Brutus e Jade ficaram assustados com o comportamento do homem. 

— Eu tenho uma ideia — disse Jade, tentando acalmar os ânimos. 

Brutus e Logan pararam e deram atenção à mulher. 

— O que você tem? — perguntou Logan. 

— Bem, eu não sei se é viável, mas, porque não hackeamos o sistema da delegacia em que Marcelo está? E, meio que inocentamos ele através desse sistema? — Jade sugeriu. 

Logan e Brutus se entreolharam. 

— Isso pode funcionar? — Brutus perguntou. 

Logan sentou diante no computador e começou a pesquisar. Ele abriu diversos arquivos e comandos até que parou e encarou os outros dois. 

— Parece que o sistema de cada delegacia é autônomo até o caso ser reportado para a inteligência nacional. Se, o caso do Marcelo ainda não tiver sido reportado, nós temos uma chance… — Logan respondeu. 

— Mas… — questionou Brutus. 

— Mas…nós não podemos invadir esse sistema remotamente. Temos que implantar in locu. 

— O que isso quer dizer? — Jade, confusa. 

— Quer dizer que precisaríamos entrar na delegacia, ir até o computador do delegado ou escrivão e acoplar um pen drive pra invadir o sistema. Sem falar, que esse dispositivo precisaria ficar no mínimo uns quinze minutos pra operação ser concluída com sucesso — explicou Brutus. 

— Eu acho que posso fazer isso! — Jade afirmou convicta. 

— Como assim? 

— Eu conheço a delegada que está no distrito. Acho que posso fazer! 

— Isso é muito arriscado — Logan alertou. 

— Temos outras opções? Não! E o que temos? Cinco horas? — questionou Jade. 

— Quatro horas, no máximo!  

— Eu preciso tentar. 

— Se te pegarem você vai ser presa imediatamente — avisou Logan. 

— Então é melhor que eu não seja pega. 

Jade encarou os homens de forma determinada. Eles imediatamente correram para preparar o pen drive. 

O décimo terceiro distrito de polícia ficava em uma avenida movimentada. Naquela tarde, duas viaturas estavam estacionadas diante do prédio e alguns policiais militares entraram no lugar carregando dois suspeitos algemados. O ar-condicionado estava quebrado e dois ventiladores barulhentos trabalhavam incansavelmente para não deixar a recepção ainda mais abafada. Jade entrou sozinha e logo chamou a atenção da recepcionista.  

— Preciso falar com a doutora Yeda — disse Jade. 

A recepcionista fez uma ligação e pediu que Jade aguardasse. Depois de falar com a delegada, disse que ela podia entrar e indicou a sala de Yeda.  

A delegada estava sentada atrás de uma mesa organizada. Os olhos fixos em um porta-retratos e uma mão apertando o queixo. Em sua testa um V de preocupação. Ela pediu para Jade sentar-se em uma cadeira que estava diante da mesa. 

—  Parece que o juiz não foi com a cara do seu amigo hacker. Eu ainda não entendi o que você e o Bruno estão fazendo tentando livrar esse cara? — disse Yeda. 

Jade retirou o pen-drive do bolso e apertou-o em sua mão. 

— Ele é só um jovem perdido. Espero que ele aprenda alguma lição com tudo isso. 

— Ele é muito esperto e fez merda invadindo o site da previdência. De onde vocês se conhecem?  

— Ele é amigo de um amigo meu. Eu devo um favor a esse amigo, por isso pedi que o Bruno ajudasse. 

— Tudo bem, Jade. Nós não nos conhecemos tão bem assim, mas espero que isso não te traga mais problemas do que você já tem no momento — aconselhou Yeda. 

— Agradeço a preocupação, mas eu tô escolhendo bem as batalhas pelas quais investir. Essa não é uma batalha tão importante assim. 

— Então o que você veio fazer aqui? 

Jade observou a cpu embaixo da mesa. Ela precisava de alguma forma distrair a delegada ou fazer com que ela saísse da sala deixando-a sozinha. 

— Eu vim falar sobre a investigação do Babemco. 

— Isso só pode ser uma ironia do destino — riu a delegada. 

— O quê? 

— Babemco saiu há pouco tempo daqui. Você tem ideia do que ele veio fazer? 

Jade negou com a cabeça. 

— Ele veio fazer uma queixa-crime e o Ministério Público abriu um inquérito com base nas provas que Babemco trouxe. Você imagina de qual crime estamos falando? 

— Oscar… 

— Exatamente! 

— Eu preciso de um advogado. 

— Sim. E se quiser ligar agora… 

— Eu vou no apartamento do Bruno, acho que ele está em casa agora. 

— Jade, infelizmente não vou poder deixá-la sair. Tem um mandado de prisão expedido agora há pouco para você. Você é a principal suspeita e o juiz pediu a sua prisão temporária. 

— Você só pode tá brincando?  

— Eu não brinco com essas coisas. Jade, você está presa — Yeda retirou as algemas de dentro da sua gaveta e pediu que Jade mostrasse as mãos. 

— Mas, Yeda… 

— Eu preciso te levar pra detenção, agora! Você pode fazer uma ligação, permanecer em silêncio e tem o direito de comparecer em uma audiência de custódia — declarou a delegada, algemando Jade. 

— Isso não tá acontecendo. 

Yeda acompanha Jade até as celas de detenção que ficam no fundo do prédio.  

Morgana pegou um uber e foi parar no restaurante Cerejas, que fica na avenida Bezerra de Menezes, uma das mais movimentadas de Recife. O restaurante é um ícone da gastronomia pernambucana, vencedor de vários prêmios e uma estrela michelin em seu currículo. 

Quando a jovem entrou no ambiente ela logo chamou a atenção por conta das suas roupas descoladas. Ela não parecia pertencer àquele lugar. 

O Cerejas era extremamente intimista, clássico e com aspecto europeu. Mesas com toalhas brancas, cadeiras de madeira envernizadas e lustres pendentes sobre cada mesa. Era o luxo da alta gastronomia. 

Morgana foi ao balcão na recepção e disse: — Boa tarde, eu gostaria de falar com o chefe! 

O recepciona deu um breve sorriso de canto dos lábios, porém com educação respondeu: — Infelizmente não será possível. O mestre está muito ocupado no momento. 

— Eu posso aguardar. Trouxe um currículo e gostaria muito de mostrar a ele. 

— Eu guardo o seu currículo e levo para o RH, é esse o procedimento. 

— Sim, eu sei, mas eu quero muito falar com o chefe — disse Morgana dando uma de desentendida. 

De repente, o chefe chegou por trás e surpreendeu Morgana. 

— Soube que você quer falar comigo? — perguntou o chefe. 

O homem era moreno, alto e careca, aparentava ter seus cinquenta anos, mas tinha um aspecto jovial, leve. 

— Chefe, Dilard, eu me chamo Morgana e sou muito fã do seu trabalho. Já fui auxiliar em algumas cozinhas, mas sempre quis trabalhar aqui com o senhor. Trouxe meu currículo! — ela disse, entregando o papel nas mãos do homem. 

— Ah querida, infelizmente não estamos contratando. 

— Eu gostaria muito de trabalhar com o senhor, por favor, me dá essa chance. 

— Sinto muito, mas hoje não precisamos de mais ninguém na nossa cozinha.  

Morgana baixou a cabeça, visivelmente triste. 

— Me deixa pelo menos conhecer a cozinha, por favor — ela pede quase implorando. 

O chefe olhou para o recepcionista que pareceu concordar. 

— Temos que ser rápidos.  

Morgana acompanhou o chefe até à cozinha. Ela olhava tudo deslumbrada como uma criança descobrindo um novo mundo. Panelas, facas, fornos. Tudo era maravilhoso. 

— Então você foi auxiliar em qual restaurante? 

— Eu trabalhei no Barra Mansa, lá na praia. Foi uma experiência única — respondeu Morgana. 

Ela aproveitou um momento de distração do chefe e retirou de dentro da sua mochila uma sacola com um rato morto. Escondeu atrás de um forno industrial e em seguida tirou uma foto do rato. 

— Bem, espero que tenha aproveitado — disse o chefe, voltando-se para Morgana. 

— Obrigado por me deixar conhecer esse lugar. Eu nunca vou me esquecer disso — ela abraçou o chefe. 

— Vamos, quem sabe um dia… deixe seu telefone. Se precisarmos de alguém você será a primeira da fila. 

— Muito obrigada, mais uma vez. 

Morgana deixou a cozinha com um sorriso no rosto. 

De volta ao décimo terceiro distrito de polícia. Yeda está registrando a prisão de Jade no sistema quando o delegado Humberto entra na sala acompanhado de dois policiais. 

— Boa tarde, doutora. Preciso que você pare imediatamente o que está fazendo aí! — ordenou Humberto. 

Yeda olhou para o homem surpresa sem entender o que estava acontecendo. 

— O que significa isso?  

— Você não está em sua delegacia. O delegado geral pediu que você se retirasse e suspendeu sua licença! 

— O meu pai fez isso? — questionou Yeda, ficando em pé. 

— Você precisa sair imediatamente! 

— Isso só pode ser brincadeira. 

— Eu não brincaria com esse assunto. 

Yeda saiu da sala revoltada. Ela precisava resolver isso de uma vez por todas. 

Enquanto isso, Jade estava respondendo algumas perguntas na sala da escrivã, no mesmo distrito policial. Ela aproveitou que a mulher se levantou para pegar alguns arquivos e inseriu o pen-drive na CPU que a escrivã usava.  

Quando a mulher retornou, não percebeu o dispositivo inserido na CPU que ficava embaixo da mesa.  

— Eu preciso fazer uma ligação urgentemente! — pediu Jade. 

Um policial entrou e levou Jade até o telefone que ficava na recepção. 

— Tá feito! — avisou Jade para Logan. 

— Vamos começar, agora. 

Jade retornou para a sala com muito receio. Se fosse descoberta sua penalidade seria diferente e mais severa, com certeza. 

O restaurante Cerejas ainda estava lotado, com pessoas tomando café e torta doce. Morgana sentou em uma das mesas e pediu um suco de laranja com uma torta de frango. Rapidamente, o garçom trouxe o prato. 

Morgana aproveitou e ligou para a vigilância sanitária. 

— Preciso fazer uma denúncia — ela disse, falando com um agente pelo celular. 

— O que se trata? Perguntou o agente sanitário. 

— Eu acabei de enviar uma foto da cozinha do restaurante Cerejas, a unidade da beira mar. Tinha um rato enorme próximo ao forno. Isso não é aceitável. Preciso que vocês interditem o local, agora. 

— Nós iremos averiguar. Obrigado pela informação. 

Agora, ela precisava aguardar o máximo possível até a chegada da vigilância. A torta de frango poderia esperar, Morgana não perderia aquilo por nada. 

Quarenta minutos depois, três homens da vigilância sanitária entraram no lugar. Eles vestiam coletes e carregavam pranchetas, sacolas e luvas. Estavam dispostos e inspecionar o restaurante. 

Morgana ouviu quando o gerente veio discutir com os homens. O chefe Dilard também apareceu e respondeu a perguntas dos agentes. “Não havia nenhuma infestação na cozinha!” “A inspeção tinha sido há poucos dias, e estava tudo certo”, justificava o chef. Mesmo assim os agentes pressionavam e exigiam que a cozinha fosse averiguada mais uma vez. 

Morgana se aproximou dos homens e causou uma certa apreensão em todos. 

— O que a senhorita deseja? — perguntou um dos agentes da vigilância sanitária. 

— Eu ouvi que vocês querem inspecionar a cozinha, tem algo de errado? Devo me preocupar? — questionou Morgana, de forma desinteressada. 

— Não, não, pode ficar tranquila. É apenas uma inspeção de rotina. 

— Então, vocês poderiam fazer isso depois que eu terminar a minha refeição. Vocês não imaginam o quão desconfortável é ter que pensar que na cozinha algo possa estar errado. Sem falar que não consigo comer com toda essa agitação. 

— Entendo, porém nós temos que fazer o nosso trabalho — respondeu um dos agentes. 

— O meu tio é advogado e ele já me explicou que nenhuma inspeção pode ser feita enquanto os clientes consomem no estabelecimento. Você sabia dessa orientação normativa. Então, por gentileza, se puderem retornar somente quando eu terminar minha refeição, eu agradeço. 

— Mas… — o homem quis insistir. 

— Eu agradeço a gentileza — enfatizou Morgana. 

— Tudo bem. — disse o agente para a jovem. — Informe aos seus clientes que o restaurante irá fechar em breve e que as atividades serão suspensas — em direção ao gerente. 

O gerente acompanhou os agentes da vigilância até à porta e em seguida foi à mesa em que Morgana estava. 

— Perdão pelo inconveniente. A refeição é por conta da casa. E, obrigado pela intervenção — agradeceu o gerente. 

Do outro lado da sala, o chefe Dilard observava Morgana comendo tranquilamente. Agora, ele tinha que ser rápido e inspecionar a cozinha de cabo à rabo. Ele tinha que aproveitar esses minutos extras que Morgana havia ganhado. Com certeza ele tinha uma dívida de gratidão com a jovem. 

Bruno entrou na delegacia e imediatamente foi pedindo a soltura dos seus clientes: Jade e Marcelo. Os dois conseguiram o habeas corpus e iriam responder em liberdade. 

Jade e Marcelo se abraçaram no hall da recepção. Ele estava muito grato e reconhecia o quanto Jade havia feito por ele. Sem falar em Bruno que mal lhe conhecia, mesmo assim agiu em sua defesa. 

— Eu nem sei como agradecer — disse Marcelo para Jade e Bruno. 

Bruno deixou a dupla no hangar. Ele ficou curioso para saber o que Jade fazia ali, mas ela disse que iria contar tudo em um momento oportuno. Ele ficou atento, mas não quis ser invasivo. Ainda existia o sigilo advogado e cliente e ele iria respeitar isso. 

Na cozinha do Cerejas, o chef Dilard acabou achando o rato morto e se livrando de qualquer multa da vigilância sanitária. 

Morgana estava em casa quando recebeu a ligação do chef. 

— Olá garotinha, está disponível no momento? — perguntou o chef. 

— Oi! Estou sim. Tudo bem? 

— Comigo sim, e com você eu imagino que vai ficar ainda melhor. 

— Como assim? 

— Tenho uma notícia maravilhosa para você. A cozinha do Cerejas acaba de abrir uma vaga para auxiliar de cozinha e eu gostaria muito que essa vaga fosse sua. O que me diz? 

— É sério? Ai meu Deus, não acredito! Não acredito! 

— É isso aí!  

— Mas, o que houve? Você disse que não tinha vaga? 

— Bem, continuamos sem ter. Mas, entenda isso como um gesto de gratidão. Se não fosse por você, nós teríamos levado uma multa gigantesca e o restaurante estaria fechado por pelo menos uns três dias. Então, nossa forma de agradecer é te oferecendo uma vaga de emprego. 

— Cara, você não sabe como eu tô feliz. Muito obrigada! Quando eu começo? 

— Hoje mesmo! Corre! 

Morgana saltou da cama e vestiu seu moletom branco. Sim, sua felicidade era genuína, apesar dos meios escusos. Porém, antes de tudo ela olhou a foto de Jade mais uma vez. 

— Isso é só o começo. Você vai pagar todo o sofrimento que me causou — Morgana disse em direção à foto. 

 

 

 

 

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