Uma forte luz branca envolveu Alice e Samuel como um escudo protetor, deixando de fora a coisa gosmenta e viscosa que acabara de sair do pescoço de Samuel. Lucca se aproximava deles devagar com a varinha em punho.
─ Nós temos que dar o fora daqui, o mais rápido possível. ─ Disse Samuel reunindo forças para se levantar. ─ Antes que ele retorne!
Lucca tentava entender como ele tinha feito aquilo, porque seus feitiços não funcionaram de primeira? Porque só o escudo havia funcionado? Ele precisava de respostas e Samuel era a única pessoa que poderia respondê-las.
─ Você terá suas respostas em breve Lucca. ─ Disse Samuel. ─ Agora nós precisamos encontrar seus amigos.
Alice tinha acabado de pular na jugular de um homem e deferido contra ele uma mordida fatal. Eles estavam andando já há alguns minutos carregando um homem desacordado com cerca de 90 kg.
─ Como você conseguiu fazer aquilo? ─ Perguntou Lucca inquieto com o que acabara de ver. ─ Não se sente mal com isso?
─ Não, eu deveria? ─ Ela respondeu simplesmente olhando para o horizonte.
─ O que era aquela coisa. Algum amigo seu? ─ Disse o garoto em tom de brincadeira.
─ Olha garoto, eu não tenho nada a ver com isso, ok. Nós tivemos uma conversa apenas e isso não faz de você meu irmão. ─ Disse Alice soltando Samuel em cima de Lucca para que ele carregasse.
O tiro saíra pela culatra, com poucas palavras Lucca foi capaz de deixar o clima ainda mais sombrio entre eles.
─ Eu…
─ Não diz nada, ta legal. Vamos tirar esse cara daqui antes que eu mate você.
Lucca segurou a varinha com força no bolso da calça, pelo que ele tinha visto, se ela tentasse algo contra ele, o garoto estaria preparado. Isso se a varinha funcionasse direito.
─ Desculpe, ─ disse ele sem jeito, ─ meu pai sempre disse que as criaturas noturnas não merecem confiança.
─ Ele é um homem sábio. ─ Disse ela sorrindo. ─ Você deveria escuta-lo mais vezes.
Alice colocou o braço de Samuel em volta de seu pescoço e voltou a carrega-lo ao lado de Lucca, perto dele ela não conseguia manter a frieza, ele fazia brotar nela um lado mais humano que ela nunca conheceu.
─ Conte-me um segredo Lucca. Qual a sua lembrança mais antiga? ─ Perguntou ela de repente. ─ Ou melhor, qual o seu maior medo?
─ No meu caso os dois andam de mãos dadas. ─ Disse ele olhando para o relógio, para desvencilhar do olhar dela.
─ Hum. ─ Indagou ela voltando a olhar para frente.
─ Minha mãe! ─ Disse ele repirando fundo. ─ Eu consigo me lembrar de tudo o que eu vejo e ouço.
─ Isso é bem legal, não é. ─ Disse ela. ─ Vampiros tem essa capacidade também.
─ Ou melhor, é quase tudo. Eu não consigo me lembrar do rosto da minha mãe.
─ Você disse que ela tinha morrido no dia em que você nasceu. Como você pode se lembra dessa época?
─ Não é muito claro, mais eu tenho quase sempre um mesmo sonho, que creio eu seja uma lembrança.
─ Que tipo de lembrança? ─ Ela perguntou.
─ Em meus sonhos, eu vejo uma mulher embalando um bebe recém nascido, eu sempre a vejo como um borrão luminoso, assim não consigo distinguir quem é essa mulher.
─ Você já alou com seu pai sobre isso? Perguntou ela.
─ Meu pai e eu temos uma relação complicada. Ele só esta preocupado em me ensinar magia. ─ Disse ele. ─ Para ele, sou eu quem vai restituir Atlântida ao seu lugar.
─ O que há de estranho nisso? Eu aprendi muitas coisas (para não dizer tudo) com a minha mãe. ─ Disse ela apreensiva.
─ Você me pareceu uma assassina nata. ─ Ele disse olhando o chão.
─ Isso faz parte de mim e eu devo aprender a lidar com isso. ─ Disse ela em resposta.
─ Porque você torna tudo tão difícil? ─ Ele perguntou cabisbaixo.
─ Essa é a minha natureza. ─ Ela respondeu. ─ Eu simplesmente vejo as coisas como são, e não como deveriam ser.
***
Samuel ainda estava fraco e caminhava com dificuldade apoiado nos ombros dos dois. Eles carregaram o corpo quase sem vida de Samuel por quilômetros ate saírem da parte inabitada da reserva, ate chegarem à rua onde Lucca morava.
─ O que era aquela coisa e o que ela fazia aqui? ─ Perguntou Alice confusa.
─ Eu não sei. ─ Disse ele colocando a varinha no bolso. ─ Espero que esse cara tenha a resposta.
─ Você esta louco? ─ Ela perguntou brava. ─ Não guarda esse treco aquela coisa pode voltar.
Alice não aparentava, mas ela estava morrendo de medo. Em seus quase 17 anos de vida noturna, ela nunca tinha visto algo como aquilo antes.
─ Onde ele vai ficar? ─ Ela perguntou quase caindo.
─ Pelo que eu sei, esta hospedado em uma pousada. ─ Ele respondeu.
─ Onde fica isso?
Lucca retirou o celular do bolso, mexeu nele por alguns segundos e nada aconteceu. O aparelho não funcionou.
─ Eu não sei. ─ Disse ele guardando-o de volta no bolso.
─ E então, onde ele vai dormir? ─ Perguntou ela encarando-o. O olhar dela era como se dissesse, “ ─ na minha casa não”.
─ Ele pode ficar na minha casa esta noite. ─ Disse ele entendendo o recado.
***
Lucca colocou Samuel escorado a uma pilastra da varanda enquanto abria a porta da garagem, foi ate a porta de entrada lateral que dava acesso à cozinha e observou por algum tempo o movimento da casa.
Tudo parecia calmo, como o carro não estava na garagem o garoto deduziu o obvio, seu pai não estava em casa. Alice continuava de pé do lado de fora olhando para ele.
─ O que você faz parada ai? ─ Ele perguntou.
─ Eu preciso ser convidada a entrar, ─ ela respondeu olhando a sua volta, – se não eu não posso.
─ Ah é… Tudo bem você pode entrar.
─ Não vá se arrepender depois, ─ ela disse entrando na garagem. ─ Você esta me dando passe livre a partir de agora.
A garagem era enorme e parecia um ferro velho, alem de vários instrumentos num canto, e em outro vários materiais recicláveis e ferramentas. Em cima de uma mesa uma espécie de bateria estava recebendo carga ligada à tomada, e do lado oposto a ela uma cabeça, braços e pernas completavam o conjunto.
─ Eu que fiz. ─ Disse ele vendo o interesse da menina na mesa.
─ E isso seria…?
─ Isso é uma IA. ─ Ele respondeu enquanto ela chegava mais perto.
─ Uma o que? ─ Ela perguntou confusa.
─ Uma IA, Inteligência Artificial. ─ Disse ele sorrindo ─ Ou se você preferir, um robô.
Alice deu uma boa olhada naquele projeto, por incrível que pareça ela conhecia todas as peças que compunham aquele projeto. Ela analisou os desenhos em uma das paredes da garagem, todos os desenhos e anotações pareciam estar corretos.
─ O que faremos com ele? ─ Disse ela apontando para o homem deitado na porta da garagem.
─ Vamos coloca-lo no meu quarto. ─ Ele disse analisando o protótipo.
Os dois atravessaram uma porá lateral que dava acesso a cozinha carregando Samuel com dificuldade
─ Lumus! ─ Disse ele fechando a porta da cozinha. Como num passe de mágica as luzes de toda a casa se acenderam.
─ Isso é bem legal.
─ Sensores ativados pela voz. ─ Disse ele. ─ Meu quarto é lá em cima, segunda porta a esquerda.
A cozinha era bem ampla, o fogão ainda estava sujo, a louça suja acumulada na pia dava a entender que a casa não era limpa há semanas. Sob a mesa um bilhete com uma letra elegante chamou a atenção do garoto.
─ O que nos temos aqui?
Amigos estão na cidade.
Não precisa me esperar, o jantar esta na geladeira.
Orfeu.
─ Ei, vai me ajudar aqui, ou ta difícil? ─ Ela gritou do topo da escada. Ele subiu a escada depressa, Alice estava a sua espera na porta do quarto.
O quarto de Lucca era bem diferente para o que Alice considerava nerd. Ela esperava ver uma dúzia de pôsteres de guerra nas estrelas, jornada nas estrelas, bonecos colecionáveis e outras coisas do gênero.
Na verdade, o quarto dele era bem parecido com o dela. Uma prateleira em cima da cama estava cheia de coleções de livros esperando para serem lidos, vários desenhos e anotações pelas paredes de projetos para serem feitos num futuro próximo.
Sam havia apagado, eles o colocaram na cama. Para garantir Lucca checou seus batimentos para se certificar de que ele ainda estava vivo.
─ Ele deve acordar amanha com uma bela dor de cabeça. ─ Disse ele tirando os sapatos do homem.
─ Eu acho que sim. ─ Ela disse sem dar tanta importância.
A garota encostou-se na cama e cruzando os braços, olhou mais uma vez para ele sem esconder o cansaço daquela caminhada.
Ela estava realmente exausta.
─ O que houve? você não me parece bem. ─ Disse ele sentando-se em uma cadeira em frente ao computador.
─ Eu estou bem. ─ Ela respondeu. ─ Eu só preciso ir pra casa.
─ Não há mais nada a fazer alem de esperar ele acordar.