─ Como eu desmaiei? ─ Ele perguntou confuso.
─ Antes me diga como eu recupero meus ossos? ─ Ela perguntou ameaçadoramente olhando em seus olhos.
Ela estava furiosa com o que acontecera, e em seus olhos Lucca podia ver claramente a vontade que Alice tinha de trucidá-lo.
─ Com alquimia. ─ Ele respondeu automaticamente ao ouvir a pergunta.
Lucca não queria responder, mas ele se via forçado a isso, parecia não ser dono de si mesmo.
Mesmo insegura com relação a ele Alice resolveu dar-lhe um voto de confiança. Com uma só mão ela arrebentou as amarras deixando-o livre mais uma vez.
─ Um passo em falso e eu trucido você! ─ Ela disse mostrando as presas.
Alice assoviou e um morcego voou em círculos em cima de suas cabeças. Obediente o animal soltou a varinha de Lucca em seus pés.
─ Agora faça! ─ Ordenou ela estendendo a mão liquefeita.
─ O que há com ele? ─ Perguntou Lucca apanhando a varinha. ─ É seu animal de estimação?
─ Eu não sei. E ele não é meu. ─ Ela respondeu. ─ Ele está me seguindo faz alguns minutos.
─ Por que ele está seguindo você? ─ Ele perguntou.
─ Já disse que não sei, ele apareceu do meu lado há alguns minutos atrás e desde então não para de me seguir.
─ Isso é estranho…
─ Meus ossos, por favor. ─ Ela pediu segurando a mão mais próxima ao rosto dele.
─ … Ah, sim… Desculpe.
Com um rápido movimento do pulso, Lucca girou a varinha fazendo com que um jato de luz branca envolvesse o pulso de Alice reconstituindo seus ossos por completo.
─ Como você consegue fazer isso? ─ Ela perguntou intrigada.
─ Eu sou um alquimista. ─ Ele respondeu. ─ Basta imaginar e as coisas acontecem.
Pela primeira vez na vida ele foi capaz de realizar uma magia certa, pelo menos dessa vez o que ele queria realmente aconteceu. E de forma extraordinária, diga-se de passagem.
─ Alquimistas ainda existem? ─ Ela perguntou intrigada. ─ Sempre pensei que estivessem mortos.
─ Mortos…
─ É…, mamãe não os vê desde 1821.
─ 1821? É brincadeira não é? ─ Lucca parecia mais confuso do que ela agora.
─ Não. ─ Ela respondeu simplesmente.
─ Sua mãe participou da inquisição?
─ Sim. O que tem isso?
─ Sua mãe tem 179 anos?
─ Claro que não… Ela tem uns 205 mais ou menos.
Lucca não parecia tão surpreso. Ele agora começava a ligar todos os pontos.
─ Essa pergunta me parece muito óbvia, mas quantos anos você tem? ─ Ele perguntou.
Alice percebeu a que ponto aquela conversa iria chegar.
─ 16 anos e sim, eu sou uma vampira. ─ Ela respondeu antecipadamente.
Aquela atmosfera ameaçadora de antes havia terminado, os dois agora estavam sentados embaixo de uma das muitas árvores admirando a luz da lua.
Eles simplesmente haviam esquecido tudo, o brilho do luar exercia sobre eles uma espécie de efeito magnético. Nem Alice nem Lucca conseguiam parar de olhar para o céu.
─ Você me lembra de alguém. ─ Ela disse pegando uma folha seca no chão. ─ Seu cheiro é familiar, como se eu já tivesse te visto antes.
─ Você me viu antes. ─ Ele respondeu. ─ No porão do colégio aquele dia.
─ Não… Não é sobre aquele dia que estou falando. É como eu disse, você me lembra de alguém.
─ Entendo.
O clima ameno fez Alice voltar a observar a lua como no início daquela noite, ela se entregou ao momento como uma criança pequena.
Uma lembrança veio à sua mente. O rosto de um homem sorrindo enquanto cantarolava para um bebê em seus braços.
As folhas das árvores balançavam ritmadas, era como se cantassem uma sinfonia noturna, os sons abafados fizeram Alice assoviar uma bela melodia de uma cação de ninar.
Tamborilando os dedos no chão no mesmo ritmo Lucca reconhecera a canção, era a mesma que o pai cantou para ele durante os anos de sua infância.
Com um sussurro quase inaudível Alice começou a cantar.
─ Como as cores num retrato
o tempo insiste em desbotar,
As lembranças que eu guardei
estão todas à murchar.
Ao fechar os olhos me transporto
a um dia mais feliz.
Em meus sonhos modificar
um destino tão sombrio.
Realmente aquela era a mesma música que seu pai cantou para ele várias noites em sua infância, ele apenas a observou uns instantes até ter coragem para continuar.
─ O calor do dia
envolve nossas mãos
Um fantasma do tempo,
sentimento que não chega ao fim,
Misturando amor e dor,
seu sorriso sempre viverá
Dentro de mim
Alice havia parado de cantar quando ele iniciou a estrofe. Como ele poderia conhecer aquela música? A música que sua mãe cantava para ela quase todos os dias. Aquela música pertencia a ela, e somente a ela.
Ver outra pessoa cantando a sua canção de ninar era estranho, mas mesmo assim ela continuou e sua voz se misturou a dele na canção.
─ Quando à noite cai, a saudade traz
A lembrança do seu rosto
E uma lágrima se torna um santuário
Uma flor que cai
no silêncio e faz
A lembrança dessa história ecoar
Trilhar a estrada das pétalas
Em nossos Laços de Flor.
A canção trouxe à tona sentimentos estranhos para ela. O corpo dela tremia, seu coração estava acelerado e suas mãos suavam frio. Ela nunca tinha se sentido assim na vida, Alice parecia apreciar uma obra de arte, cada detalhe, luz e sombra como num espetáculo teatral a procura de um defeito, porém este não existia.
Lucca apenas observava o luar calado ao lado dela. Ele parecia querer lembrar-se de alguém, de seu passado, cujo rosto era apenas um borrão confuso em sua mente.
─ Ela é linda não é? ─ Disse Alice olhando para ele. ─ Minha mãe costumava cantar ela para mim na hora de dormir.
─ Eu nunca conheci minha mãe. ─ Disse ele com os olhos marejados.
─ O quê aconteceu com ela? ─ A garota perguntou receosa ao segurar sua mão.
─ Ela morreu no dia em que eu nasci. ─ Ele respondeu, enxugando as lágrimas. ─ Pelo menos é o que meu pai diz.
─ Eu também não conheci meu pai, ele desapareceu antes mesmo do meu nascimento. ─ Ela disse quase chorando. ─ Mamãe diz que é o destino. Eles não estavam destinados a ficar juntos.
─ Eu sinto muito. ─ Disse ele ajeitando os óculos. ─ O quê houve com ele?
─ Eu não sei. Ele simplesmente desapareceu. Mamãe diz que foram as circunstâncias que fizeram ele se separarem. Eu acho que foi por causa da minha condição.
─ Seu pai não é um vampiro?
Alice de algum modo se sentia segura perto dele, parecia que ela o conhecia há muito tempo, mesmo antes do incidente no porão do colégio. Ela se aproximava cada vez mais de Lucca, ele tinha um cheiro inebriante e adocicado.
Ela não conseguia resistir. Ela simplesmente não queria resistir a ele, queria se entregar aquelas novas sensações, um misto de medo e insegurança.
Ele se virou para ela ao perceber que ela o olhava, ele queria beijá-la.
Ela parecia tentada a aceitar qualquer coisa que ele lhe oferecesse.
─ Aahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhr!
Um grito vindo de longe trouxe os dois jovens de volta à realidade.
─ O quê foi isso? ─ Perguntou Alice assustada.
─ Samuel. ─ Disse Lucca levantando-se às pressas. ─ Eu preciso ajudá-lo.
***
Produzindo uma barreira luminosa transparente ao redor de si e da criatura, Samuel manteve preso o ser que ameaçava a integridade dos novos guardiões. Eles ainda não estavam preparados para tudo aquilo. Pelo menos não agora.
Uma fumaça negra e acida corroía tudo por onde passava, deixando um rastro fétido de morte e destruição.
Um ser que era capaz de manipular mentes, moldar pensamentos, criar ilusões, aniquilar civilizações e destruir mundos inteiros, estava mais uma vez ressurgindo.
A cortina negra que havia parado de se mexer agora estava se concentrando em um único ponto, tomando a forma de um ser humano.
─ Você não pode me deter por mais tempo Samuel ─ Disse a voz espectral vinda do além. ─ Enquanto a humanidade existir, o vazio também existirá.
Aquela voz era familiar aos ouvidos do antigo guardião. Seus olhos verdes esmeralda, estavam marejados com as lágrimas que ameaçavam rolar a qualquer momento.
─ Sempre que você ameaçar a Terra, nós estaremos aqui. ─ Ele respondeu olhando para um amontoado de fumaça escura que se materializara em carne e osso bem na sua frente.
A figura de um homem alto e muito bem vestido agora o encarava, fazendo com que Sam sorrisse por um instante reconhecendo um velho amigo que não via há muito tempo.
O homem de pele parda trajava um terno escuro alinhado que lhe caia muito bem no corpo, uma camisa de linho azul com dois botões abertos que mostrava parte do peitoral coberto por pelos.
─ Nenhum deles acredita realmente na magia. ─ Disse o homem com a voz doce. ─ Eu sei… Pois estou em toda parte, consumindo cada um deles aos poucos, eles ainda acham que isso é brincadeira.
─ Você não pode forçar os humanos a nada. ─ Disse Samuel aproximando-se do inimigo com toda a cautela possível.
─ Eu não preciso de muitos, um só já me basta. ─ O homem pardo voltara à aparência de fumaça e depois tomou a aparência de uma garota. ─ Ela ainda será minha, cedo ou tarde todos eles se voltarão para o vazio.
─ Eu irei protegê-los. ─ Respondeu Samuel ─ Custe o que custar.
─ Os sonhos são um passe para o submundo, meu caro. A enganação dos sonhos, o vazio, é a partir daí que eu me materializo da animosidade humana. Eles têm seus corações conturbados do ódio, da inveja e da maldade. E nesse mundo você não tem poder.
─ Eles são mais fortes do que você imagina. ─ O antigo guardião agora parecia perdido, procurando por alguma coisa no fundo de sua mente, alguma coisa que pudesse tirá-lo dali em segurança.
─ Eu destruirei todos eles. ─ Respondeu a forma feminina. ─ Sua amada Helena foi apenas um mero detalhe.
Samuel agora podia distinguir a forma que a sombra vazia tomara. A forma feminina era Helena, a mulher que dividiu com ele a centelha da criação há anos atrás. O mesmo rosto, o mesmo tom de pele e até mesmo a voz, tudo ali lembrava a Helena que ele viu morrer.
─ Ela suplicou que você a salvasse. ─ Disse a mulher. ─ Você não foi capaz de salvá-la.
─ Eu não deixarei que você vença. ─ Disse Samuel entoando algumas palavras estranhas.
─ Você não pode fazer mais nada contra mim. ─ Disse o ser transmutado em Helena. ─ Meu arauto já foi escolhido.
***
Um clarão vindo do meio da reserva fez o garoto acordar de seus devaneios de adolescente, Ângelo correu em direção ao clarão de luz, ele queria checar a fonte daquele fenômeno o mais rápido possível algo ali parecia estar errado.
Ele avançou mata adentro carregando uma mochila cheia de parafernálias tecnológicas esperando encontrar Alice segura e longe de tudo aquilo.
O garoto se corroia por dentro por não saber o que estava acontecendo, ela nunca tinha demorado tanto tempo lá nesse horário, meia hora no máximo era suficiente para que ela se alimentasse.
Ele sabia de seu segredo já há muito tempo, Alice era extremamente cautelosa em suas caçadas, ela sempre procurava os horários em que poucas pessoas estariam na reserva e em questão de minutos ela estaria de novo em casa.
Não demorou muito para ele perceber a verdadeira natureza de Alice e de Eurídice, a vida noturna e os carregamentos periódicos de sangue confirmaram suas suspeitas. Há algumas semanas Alice estava estranha, ela havia saído um pouco de sua rotina habitual, parecia confusa e indecisa com alguma coisa.
“─ Teria algo a ver com o homem que estivera em sua casa alguns dias atrás”. ─ Ele pensou de repente. “─ O que você quer com a minha Alice?”.
─ Ele irá roubá-la de você. ─ Ele ouviu uma voz até então desconhecida.
Seu coração batia mais rápido à medida que ele avançava floresta adentro em desespero. O garoto procurava de onde vinha aquela estranha voz, ela parecia estar tão perto, mas ele não via de onde ela vinha.
─ Ele também a ama. ─ A voz continuava a sussurrar. ─ Ele tomará tudo o que é seu de direito.
─ Quem está ai? ─ Perguntou o garoto.
─ Venha até mim Ângelo, siga a minha voz.
─ O que você quer de mim? ─ Gritou ele olhando em volta.
─ Quero que me ajude a realizar meu desejo. ─ Disse a voz. ─ Eu posso te dar o mundo em troca.
─ Eu não quero o mundo. ─ Ele respondeu.
─ Eu posso te dar fama e fortuna, e com eles o amor de todas as mulheres do mundo, basta que você diga sim.
A voz havia tocado em seu ponto fraco, Alice era a única coisa em todo o mundo que fazia Az ter vontade de sair de casa. Ela era a única parte do seu dia que realmente valia a pena.
─ Eu não me interesso por fama ou dinheiro. ─ Limitou-se a dizer. ─ A única coisa que eu quero é o amor dela.
─ Eu tenho o poder para realizar todos os seus desejos. ─ Continuou a voz. ─ Em troca só peço que me ajude a reconstruir esse mundo. Um mundo novo onde meus inimigos se curvem diante do meu poder.
─ Sim, este mundo está podre. ─ Ele concordou.
─ Torne-se a peça crucial de minha vingança e realize seu maior desejo, peça qualquer coisa e eu lhe darei.
─ Só há uma coisa nesse mundo que eu desejo realmente. O amor de Alice.