Já se avistavam as últimas árvores do bosque quando Ying foi novamente assaltada pela sensação de estar sendo observada. Apesar de estar distraída, sua mente consciente distante, vagando por outras paragens e preocupada com outras coisas, tanto que não saberia descrever os lugares onde havia acabado de passar, depois de uma vida inteira de treinamentos, seus sentidos se condicionaram a ficar permanentemente em alerta e lhe chamavam agora de volta à realidade.

Parece que meu sexto sentido voltou a funcionar afinal. – pensou Ying, examinando o terreno em volta. – Só espero que não volte a falhar como hoje no Templo. Não consigo entender ainda como não senti a presença de Ayoros.

Sentindo que seu observador, fosse quem fosse, tinha se afastado um pouco, Ying continuou a andar, aparentando normalidade, mas atenta a qualquer mudança ao seu redor. Não havia dado ainda meia dúzia de passos quando um quase imperceptível ruído nos arbustos à direita chamou sua atenção. Sua reação foi imediata: pulou na direção do som e após uma luta rápida conseguiu imobilizar o intruso indiscreto.

– E então, Denora? O que ainda quer de mim? Por que está me seguindo?

A mulher mais velha olhou para ela com ar sério e replicou:

– Antes que eu responda poderia me deixar levantar? Não pretendia atacá-la… Creio que deve saber disso.

Ying olhou para ela, indecisa, por alguns segundos. Então, levantou-se e estendeu a mão para ajudar a outra a se levantar também.

As duas guerreiras ficaram frente à frente, se encarando.

– Senti que o nosso assunto havia ficado inacabado, mas não esperava que me procurasse tão rápido e dessa maneira assim furtiva. O que pretende afinal? Testar-me também?

– Como sabia que era eu?

– Eu perguntei primeiro…

– Apenas me responda. Acredite, é muito importante que eu saiba. Vai entender o porquê mais tarde.

Ying suspirou, nem um pouco satisfeita com aquela situação, mas cada vez mais curiosa. Até parecia estar novamente sendo sabatinada pela sua mestra Nevara. Enfim resolveu responder:

– A princípio não sabia ao certo…até que reconheci a sua cosmoenergia. E daí?

Denora balançou a cabeça, parecendo pensativa e tornou a perguntar:

– Então não me reconheceu imediatamente… – murmurou como se falasse consigo mesma. – Mas sabia que estava sendo seguida, não é? Diga-me, quais foram exatamente as suas sensações e qual foi o momento em que reconheceu o meu cosmo.

– Não entendo…

– Já disse. – cortou a outra, asperamente. – Entenderá quando for a hora certa, não antes. Explicarei tudo assim que me disser o que quero saber.

Ying suspirou novamente e olhou para cima, rememorando os acontecimentos de momentos antes:

– Primeiro foi apenas a sensação de que não estava mais sozinha, o que fez a minha pele começar a formigar… depois senti um cheiro que não fazia parte dos outros cheiros da mata… Nesse instante, ouvi um ruído nos arbustos e os vi se mexendo…

– Foi aí que sentiu a minha cosmoenergia?

– Sim, cerca de um milésimo de segundo antes de pular em você.

Denora fechou os olhos e balançou a cabeça afirmativamente.

– Foi o que pensei… – após alguns instantes ela ergueu o olhar e falou em tom sério. – Mocinha, você não está tão preparada quanto pensa estar.

– O quê?! Por que diz isso?

– Criança, eu já a estava seguindo há quase dez minutos! Se quisesse, poderia ter cortado a sua garganta antes que sequer soubesse o que estava acontecendo. As reações que você acabou de descrever foram corretas, mas você devia estar muito distraída ou então os seus sentidos embotados demais pelos anos de paz. Treinamento é uma coisa importante, é indispensável para desenvolver os sentidos, é verdade, e você os desenvolveu bem. Seu irmão deve ter ajudado muito nisso também, ele é um grande Cavaleiro… – ela fez uma pausa, parecendo escolher as palavras. – O que quero dizer é que na prática é muito diferente, é a sua vida que está em jogo. Sei que já deve ter ouvido isso centenas de vezes de seus mentores, talvez até o tenha ensinado a outras, mas se não assimilou realmente ou se algo a está perturbando tanto a ponto de não conseguir usar essa habilidade, então sinto dizer que não terá a mínima chance contra os Cavaleiros de Ouro. Trocando em miúdos: se quiser realmente se dar bem aqui é melhor ficar mais esperta, ou será a sua primeira e última batalha de verdade.

Ying engoliu em seco, muda de espanto. Como aquela desconhecida se atrevia a falar com ela daquela maneira? No entanto, não conseguia protestar pois sentia a verdade em cada uma daquelas palavras. Por mais duros e realistas que tenham sido seus treinamentos, inconscientemente ela sempre soube que não havia perigo real a não ser o de alguns ferimentos sem importância. Mesmo durante aquela luta com Mariska, apesar de ser pra valer, sabia que a vitória seria sua, pois sua adversária embora determinada e habilidosa era muito mais fraca em relação ao cosmo e não tinha o seu treinamento. Agora iria enfrentar um desafio verdadeiro, teria de lutar com Cavaleiros de Ouro experientes, como a própria Denora dissera, com cosmos iguais ou superiores ao seu. Poderia perder a vida realmente defendendo as suas idéias, mas sempre foi ensinada que uma Amazona não deveria ter medo de defender sua liberdade e ela estava determinada a isso custasse o que custasse.

– Por que está me dizendo essas coisas? Por que tanta preocupação com o que possa acontecer comigo?

– Porque você me lembra alguém… – disse ela pausadamente com o olhar perdido em um ponto distante. – … alguém que há trinta anos chegou a este Santuário com esse mesmo vigor e determinação, disposta a enfrentar o mundo inteiro pelo que acreditava sem medir as conseqüências quaisquer que fossem. Era uma guerreira extraordinária, diziam, dotada de grande potencial e com fogo nos olhos, assim como você. Ela também teve que enfrentar vários Cavaleiros, não os de Ouro, pois seu cosmo não chegava a tanto, para provar seu valor e conquistar o direito de não usar a máscara. Ela os venceu um a um, após batalhas muito duras e o Mestre reconheceu diante de todos os Cavaleiros que a reivindicação era justa…

– Se tudo correu bem então por que acha que não vou conseguir? Acaso acha que sou inferior em poder a ela? E onde está essa guerreira tão extraordinária? Não vi ninguém sem a máscara em todo o campo, a não ser…

Ying arregalou os olhos e deixou escapar uma exclamação abafada de surpresa pelo súbito entendimento que tivera. Denora, com ar sombrio fez sinal para que ela se calasse e prosseguiu:

– Vejo que já entendeu a quem me refiro. Muito bem. Como havia dito, o Mestre havia reconhecido que ela, quero dizer, eu conquistara por merecimento o direito de não me velar e, despreocupada e satisfeita comigo mesma, voltei para minha cabana a fim de descansar pois todas aquelas batalhas haviam me esgotado completamente.

Denora fez uma ligeira pausa e seu olhar assumiu uma expressão que podia ser interpretada como um misto de ódio e dor.

– Naquela mesma noite, já bem tarde, eu dormia profundamente quando algo, não sei precisar se foi algum ruído ou uma terrível sensação de urgência, me fez despertar repentinamente em sobressalto. Infelizmente, foi uma reação tardia. No instante seguinte, cerca de uma dúzia de soldados caiu em cima de mim, imobilizando-me. Não tive chance de me defender pois minha cosmoenergia ainda estava em seu nível mínimo e eles podiam ter me matado se quisessem, mas há coisas piores do que a morte, principalmente para uma mulher jovem e consciente de sua beleza, mesmo sendo uma guerreira, e a pessoa que havia tramado aquele ataque covarde sabia disso muito bem.

– O que…O que aconteceu depois? – murmurou Ying, hesitante, temendo ouvir a resposta.

– Quando eles tiveram a certeza de que haviam me imobilizado completamente e que eu não tinha como me defender, abriram passagem para dois novos algozes, que pareciam ser os chefes, principalmente o que vinha na frente. No início, devido à escuridão, não conseguia distinguir mais do que seus vultos, até que um raio, prenunciando uma tempestade que se aproximava, iluminou subitamente o quarto e pude reconhecê-los: eram Misty, o Cavaleiro de Prata que eu havia derrotado, e seu mestre, o Cavaleiro de Ouro Afrodite de Peixes.

As mãos de Denora crisparam-se de ódio.

– Quando Misty se aproximou de mim a passos lentos, sorrindo, com ar de quem saboreia o momento de triunfo, compreendi tudo imediatamente. Aquele ataque na calada da noite não passava de uma vingança cruel e covarde e, o pior de tudo, que não me surpreendia nem um pouco. Tive raiva de mim mesma naquela hora, pois deveria estar preparada para algo assim. Na verdade, acho que só não esperava que fosse tão cedo.

Sentindo a ansiedade de Ying, ela continuou:

– Fiz um esforço enorme para me libertar, mas foi inútil. A raiva era tanta que não conseguia exprimi-la em palavras ou imprecações. A única reação de que fui capaz foi cuspir no rosto daquele covarde quando o tive ao meu alcance.

Com uma exclamação de surpresa e nojo, Misty limpou o rosto e chamando-me de cadela amazona ergueu a mão para me esbofetear. Afrodite o deteve segurando-lhe a mão e mandou que ele se afastasse. Com um aceno de cabeça ordenou que um dos soldados se aproximasse com uma tocha. Pude então observar melhor o famoso “Cavaleiro das Rosas”. Não o conhecia pessoalmente, mas sua fama de ser o mais belo mas também o mais cruel e frio dos Cavaleiros já havia chegado aos meus ouvidos. Os boatos realmente lhe faziam justiça, porém só quem o tenha visto, ao menos uma vez, poderia ter uma idéia da presença impressionante e terrível daquele homem. O seu rosto era – e ainda é, pois graças a um pacto feito com a própria deusa da beleza, ele pôde conservar sua juventude durante todos esses anos – belo como o de Ádonis1, mas suas feições aparentemente tranqüilas assumem, quando ele assim o deseja, mostrando a sua verdadeira personalidade, uma expressão tão dura e implacável quanto à de um ídolo de mármore. Os seus olhos… Ah, aqueles olhos!… Eles são de um azul tão misterioso e profundo que você pode se perder neles e nunca mais retornar. São magnéticos e hipnotizadores como os olhos de uma serpente. Foi exatamente assim que me senti quando o meu olhar encontrou o dele, como uma presa acuada e vencida, aprisionada pela força daqueles olhos, prestes a ser devorada pelo predador. Perdi toda a vontade de lutar naquele momento e permaneci imóvel…

Denora fez outra pausa, sorrindo amargamente:

– Chega a ser engraçado…ou irônico, talvez…Pelo menos, agora, depois de tantos anos…Eu que luto com a força da constelação da Serpente sentindo na própria pele a energia subjugadora que usava contra meus adversários…Mas já estou divagando demais. Voltemos aos fatos. Ele se aproximou de mim com toda a majestade de um vencedor implacável e, para a minha surpresa, acariciou-me o rosto com uma de suas rosas. Uma bela rosa vermelha.

“ – Sua pele é suave e fresca… – murmurou ele, distraídamente. – como as pétalas desta rosa e assim como esta rosa, você também tem espinhos mortais. Bela e perigosa… Eu gosto dessa combinação, mas, infelizmente para você, isso não irá ajudá-la agora. Você humilhou meu discípulo favorito e fazendo isso, é claro, humilhou também a mim e isso não pode ficar sem uma resposta à altura.”

– Ele continuou a acariciar meu rosto com a rosa, bem devagar. – continuou Denora. – Lembrei-me imediatamente das histórias sobre aquelas terríveis rosas mortíferas que ele cultivava e comecei a suar frio, acreditando-me perdida. Percebendo o meu terror, ele sorriu e se afastou um pouco. Após observar-me durante o que me pareceu um longo tempo, ele disse com voz serena:

“ – Não se preocupe, eu não vou matá-la. Mas você é bonita demais e isso é uma pena!…Não posso permitir que alguém como você continue a andar livremente pelo Santuário. Afinal, eu sou o representante da deusa da beleza. Você compreende, não é mesmo?”

Então ele elevou seu cosmo e dezenas de rosas negras materializaram-se ao seu redor. Fechei instintivamente os olhos. Já sabia o que ia acontecer. Tudo o que me lembro depois é de sentir que os guardas me largavam e do grito de Afrodite que se confundiu com o meu:

“ – Rosas Piranhas, a ela!”

Denora estremeceu involuntariamente.

– Não tive tempo nem de erguer os braços para proteger o rosto, mas mesmo que o tivesse feito teria sido em vão. Não pode imaginar a dor terrível que senti naquela hora, talvez somente menor do que a dor moral. Ainda tenho pesadelos com aquela noite fatídica. Veja, bela guerreira, no que ele me transformou.

Com um gesto teatral, ela arrancou a meia-máscara que usava. Ying recuou de puro horror diante do que viu: metade do rosto de Denora era nada mais do que um hediondo emaranhado de cicatrizes que deixavam irreconhecíveis as feições.

Absolutamente impassível, Denora recolocou a máscara cuidadosamente. À custo, Ying conseguiu recuperar o autocontrole. Quando viu que ela se acalmou, Denora continuou:

– Deve estar se perguntando por que ele só deformou metade do meu rosto. Também me fiz a mesma pergunta, mas nem precisei expressá-la em palavras. Ele mesmo explicou: era para que sempre pudesse me lembrar de como eu era antes de desafiá-lo. Dito isso, Afrodite virou as costas e me deixou só. Quando consegui reunir forças para me levantar e pedir ajuda, vi outra dádiva que, generosamente, me deixara: uma máscara. Com toda a fúria, apanhei-a e atirei-a a um canto do quarto. Ainda estava convicta em não usá-la mesmo naquele estado. Que todos vissem o que aquele maldito andrógino havia feito comigo! Entretanto, as mulheres que me socorreram acabaram me convencendo de que seria perigoso para mim deixar os ferimentos assim expostos, mesmo depois de cicatrizados. Afinal de contas, de qualquer maneira todos já sabiam o que havia acontecido. No início, não me importava em viver ou morrer; queria mais era me livrar daquilo tudo, não por causa da vaidade, do meu rosto meio deformado, mas o meu orgulho de guerreira também havia sido cruelmente ferido. Acho que foi ele, no entanto, que me ajudou a continuar vivendo. Sabia que não tinha força suficiente para derrotar Afrodite, mas faria com que ele soubesse que não havia quebrado o meu espírito, que não havia me derrotado totalmente. Peguei então a máscara que Afrodite havia me deixado e cortei-a ao meio, cobrindo apenas parte do meu rosto e saí de casa, após mais de três meses de total isolamento. Todos ficaram admirados com a minha audácia e a notícia, é claro, chegou rapidamente aos ouvidos de Misty e de seu mestre. Sabia que eles não deixariam isso como estava, só que dessa vez estava preparada e ansiosa para entrar em ação. Não precisei esperar muito. Alguns dias mais tarde, após o treinamento diário com as aspirantes, senti uma forte sensação de que estava sendo espreitada. “Chegou a hora!” – pensei, sorrindo comigo mesma. Continuando a agir normalmente, como se não tivesse me dado conta de nada, dirigi-me propositalmente para a parte mais erma do Santuário, nas proximidades da antiga prisão do rochedo. Para minha satisfação, meu perseguidor mordeu a isca, não deixando de me acompanhar. Já o havia reconhecido, era ninguém menos do que o capacho de Afrodite, Misty. Eu estava bem alerta dessa vez e podia até sentir a alegria selvagem que ele sentia em achar que ia me surpreender novamente. Pobre tolo! O surpreendido foi ele. Quando estava pronto para me atacar, simplesmente sumi de sua vista, deixando-o completamente atônito e antes que ele tivesse tempo sequer de pensar, estava por trás dele. – Denora riu, unindo os dedos indicador e médio da mão direita e encolhendo os outros. – É incrível o que a pressão de dois dedos em determinado ponto do pescoço podem fazer. O “Toque da Víbora” … É um golpe bem simples, na verdade, embora não seja qualquer um a ser capaz de fazê-lo. Ele não teve tempo nem de sentir medo. Ficou completamente paralisado, temporariamente, é claro, mas completamente à minha mercê.

– Esse não é um golpe da antiga arte ninja? – perguntou Ying, admirada.

– Sim, tem razão. – Denora suspirou. – Andei muito por esse mundo antes de vir para cá. Mas continuando…Como soubesse que seu mestre Afrodite deveria estar ansioso por saber o que acontecera, e uma vez que Misty não estava em condições de apresentar o seu relatório, não me fiz de rogada e gentilmente prontifiquei-me a ir até a Casa de Peixes fazer isso em seu lugar. E foi aos pés de um surpreso e furioso Afrodite que depositei o seu discípulo favorito. Como já disse antes, é claro que sabia que ainda não era páreo para aquele temível Cavaleiro e que provavelmente não sairia viva dali, só que dessa vez não me pegaria sem uma boa briga e estava disposta a tudo.

“ – Aqui está seu belo capacho, Afrodite. Obviamente, não teve sucesso desta vez, pois continuo viva e o outro lado do meu rosto continua intacto. Como pode ver, também Misty está em perfeitas condições, ou quase, mas não se preocupe, ele poderá voltar a se mover em algumas horas. Poderia ter feito com ele o mesmo que fizeram comigo… – disse lançando um rápido olhar para Misty, o qual arregalou desmesuradamente os olhos e principiou a suar frio. – Mas não sou igual a vocês.”

O olhar que Afrodite lançou para Misty podia ser comparado ao que se lança para um animal asqueroso.

“ – Por que não usou a máscara do jeito que a deixei em sua casa? Será que o aviso que lhe dei não foi claro o suficiente? Foi uma tola em vir até aqui, Denora. Ou acredita que sou tão inepto quanto Misty?”

“ – Desta vez não estou indefesa, Afrodite. Embora o meu cosmo seja inferior ao seu, estou preparada para enfrentá-lo como Cavaleiro e posso garantir que não será uma luta tão fácil quanto está pensando. Prepare-se, pois vou acabar com você!”

“ – Insignificante Amazona! Como ousa pretender me enfrentar?” – berrou Afrodite, furioso. – “Pois muito bem, você procurou sua própria morte; não irei decepcioná-la.”

– Nós começamos a medir nossas forças, como em toda preliminar de uma luta entre Cavaleiros, elevando nossos cosmos até o máximo antes de partirmos para o combate real. – continuou Denora. – Entretanto, quando íamos começar a lutar, fomos bruscamente interrompidos por uma aparição inesperada: o Mestre em pessoa.

“ – Parem!” – gritou ele com voz tonitruante. – “O que pensam que estão fazendo?”

“ – Mestre!!” – dissemos ao mesmo tempo.

“ – Esta é uma luta não autorizada. Cavaleiros de Athena não devem lutar entre si por querelas pessoais. Estão querendo destruir uma estrutura organizada durante centenas de anos?”

“ – Não tive culpa, senhor.” – falou Afrodite, cinicamente. – “Estava apenas me defendendo da ousadia dessa mulher que invadiu a minha Casa e ainda agrediu covardemente o meu discípulo Misty, não contente em tê-lo derrotado no Desafio.”

“ – Isso não é verdade!! No dia em que ganhei o Desafio, ele e seu discípulo invadiram a minha cabana na calada da noite e, aproveitando-se de que eu estava sem forças, fizeram isso comigo!” – gritou, arrancando a máscara. – “ Onde o senhor estava que não apareceu para impedir essa infâmia? Eles não puderam aceitar a derrota e se vingaram da maneira mais vil! E não contentes com o que haviam feito, Afrodite enviou o seu capanga para terminar o que haviam começado. Eu apenas me defendi e vim até aqui, de peito aberto, à luz do dia e não me escondendo nas sombras, para acabar de vez com essa questão.”

“ – Entendo as suas razões, Denora, e até mesmo a sua raiva, que faz com que se dirija a mim dessa maneira desrepeitosa. Infelizmente, naquela noite fatídica entrei em um dos meus longos períodos de meditação, nos quais me desligo inteiramente do que acontece neste mundo, e somente há uma hora atrás soube de tudo o que se passou. Todavia, a sua atitude ainda não se justifica, pois na condição de Mestre Supremo de todos os Cavaleiros de Athena, você deveria ter recorrido a mim em primeiro lugar antes de tomar a justiça em suas próprias mãos.”

“ – Sinto muito, Mestre.” – disse, inclinando-me respeitosamente, após recolocar a máscara. – “O que diz é verdade, mas gosto de resolver meus próprios problemas.”

“ – Os problemas deixam de ser apenas seus quando envolvem questões relativas aos mais antigos preceitos deste Santuário. Como castigo manterei a tradição da máscara até que outra mulher se disponha a enfrentar o Desafio.”

“ – Mas, senhor, isso não é justo!! Eu…”

“ – Tenho dito! O destino de uma será seguido por todas. Entretanto, por sua coragem, poderá manter metade de seu rosto descoberto como está agora. Afinal, você conquistou esse direito. Quanto a você, Afrodite de Peixes…”. – disse o Mestre, voltando-se para o Cavaleiro de Ouro.

“ – Eu, senhor?!” – exclamou com fingida humildade.

“ – Sim, Afrodite. Você é o maior responsável por esta situação. Além de desobedecer às minhas determinações e às leis deste Santuário, você traiu sua própria honra de Cavaleiro, pois não aceitou o resultado de uma luta honesta e limpa, procurando uma vingança injustificada e sórdida. Seu discípulo havia perdido e tanto ele quanto você deveriam ter encarado isso de maneira leal. Isso não é um bom exemplo para os outros aprendizes, Afrodite, como mestre, deveria saber disso. Seu comportamento foi imperdoável e, o pior de tudo, reincidiu em uma segunda tentativa contra a vida dela. Acreditou mesmo que ia ficar impune? Apesar de ser um Cavaleiro de Ouro e até mesmo por causa de ser um, não ficará sem um castigo.”

O Mestre fez uma pausa sem desviar o olhar implacável do Cavaleiro de Peixes. Afrodite ajoelhou-se, abaixando a cabeça, mas seus olhos brilhavam em fogo e suas mãos estavam crispadas.

“ – Afrodite de Peixes, pelas leis do Santuário de Athena, o que vou fazer agora deveria ser feito em presença de todos os outros Cavaleiros em conselho como um exemplo, mas vou poupar-lhe esta humilhação porque sei que para você ela seria talvez pior do que o próprio castigo, em virtude de sua natureza vaidosa. Como a própria deusa Afrodite, apesar de ser a deusa do Amor e da Beleza, possuía esse mesmo temperamento, sendo você seu protegido e escolhido para representá-la, não vou destituí-lo de sua posição de Cavaleiro; apesar de ser essa a minha vontade e o que realmente merecia, pois compreendo que não pode fugir de sua própria natureza, entretanto…” – o Mestre suspirou, mas não suavizou voz. – “Deveria saber o que é certo e errado e, portanto, tentar corrigir os seus defeitos. Infelizmente, você provou que é tão feio por dentro quanto é belo por fora. Para o seu próprio bem, para que se arrependa de seus erros, vou bani-lo deste Santuário, onde só poderá comparecer por ocasião dos Conselhos, uma vez que continuará investido de sua posição de Cavaleiro. Deve partir imediatamente e levar consigo seu discípulo.”

Afrodite levantou-se prontamente, tremendo de indignação.

“ – Senhor!! Mestre, eu…Não pode fazer isso comigo!!”

“ – Posso e já está feito. Minha palavra não volta atrás. Se algum dia se arrepender sinceramente do que fez será recebido de volta de braços abertos. Até lá, que seja cumprido o que determinei.”

– Vendo que não adiantaria protestar, Afrodite inclinou-se em uma vênia trocista e saiu arrastando Misty pela capa. Nunca mais os vi desde então, mas saiba que Afrodite sempre aparece nos Conselhos, embora não seja apreciado pela maioria dos Cavaleiros. – concluiu Denora. – Bem esta é a minha história. E então? Continua disposta a se arriscar?

Ying nem piscou.

– Agora mais do que nunca, Denora. Por mim, por meu povo, por todas as mulheres deste Santuário e por você. Seu sacrifício não terá sido em vão. Quem sabe seja eu a mulher citada pelo Mestre, aquela que libertará todas as outras do jugo da máscara?

Denora olhava atentamente para Ying. Seu olhar mantinha ainda uma mistura de desdém e incredulidade, mas também uma crescente simpatia.

– Pode parecer pretensão da minha parte, sei disso. – Ying sorriu. – Posso morrer tentando, mas e daí? Nesse caso, algum dia, uma outra tentará o mesmo até que alguém finalmente tenha sucesso. Entretanto, nunca me perdoarei se não tentar. Tive um bom treinamento, é verdade. Também é certo que sou jovem e inexperiente. E como ganharei experiência se não me arriscar? Será uma prova de fogo como disse meu irmão, aliás, todos estão me dizendo isso desde antes de vir para cá. Não importa o que digam: nada me fará voltar atrás.

– Você tem muita coragem, menina, ou nem um pingo de amor à vida.

– Está enganada. É por amar tanto à vida que não posso fugir daquilo em que acredito.

– Já que é assim… – Denora deu-lhe um abraço maternal. – Entretanto, não se esqueça do que lhe disse. Tome cuidado e que Athena esteja com você. Preciso ir, as outras estão esperando por mim. Volte quando quiser, será sempre bem-vinda aqui.

– Obrigada, Denora. Gostei muito de conhecê-la. Prometo que estarei mais atenta. Até breve.

Denora respondeu com um ligeiro aceno de cabeça e retirou-se.

Continua…

Notas: 

Adônis: Jovem de grande beleza protegido pela deusa Afrodite.(N. A)

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