O Encontro
O Sol já estava nascendo no Santuário. Contrariando seus hábitos, Ayoros, aquela noite, prolongara demasiadamente o treinamento de seu irmão mais moço, o jovem Ayolia, e de seu discípulo, Hargos, recém sagrado Cavaleiro de Bronze da constelação de Lince e, para estranheza dos mesmos, se mostrava ansioso e distante. Quando finalmente resolveu encerrar, ao invés de se recolher juntamente com seu irmão, mandou que ele fosse na frente com Hargos e deixou-se ficar ali, observando o céu noturno, cujo leste começava a se iluminar com os primeiros sinais da aurora. Não sabia bem o porquê, mas não sentia sono algum e como que alguma força misteriosa o prendia àquele lugar. Sentia que alguma coisa extraordinária, algo que iria mudar sua vida estava para acontecer, mas o que seria?
Isso é uma tolice! – levantou-se, irritado consigo mesmo. – Não vai acontecer nada no Santuário! Há muito tempo está tudo em paz por aqui, graças à Athena. Estou perdendo horas de precioso repouso por nada. Não consigo entender o que está acontecendo comigo. Nunca fui dado a pressentimentos! Esse negócio de percepção extra sensorial sempre foi mais com o Mu. Mas então por que essa estranha inquietude que tomou conta de mim desde ontem? Por que o meu coração teima em acelerar-se à medida que o sol nasce? Devo estar ficando louco, no entanto, só há um jeito de me certificar se esta insólita sensação tem algum fundamento. Acho que vou procurar Mu, se alguma coisa irá acontecer aqui, talvez ele já saiba do que se trata.
Ayoros já se dispunha a ir ver seu amigo quando a sensação aumentou, tornando-se mais definida para ele. Era uma intensa cosmoenergia que se aproximava cada vez mais.
Que cosmoenergia poderosa! – pensou Ayoros, assustado. – É diferente de qualquer outra que já senti antes! Não pode ser de nenhum dos Cavaleiros de Ouro que conheço. Quem estará chegando ao Santuário? Será amigo ou inimigo?
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Foi inspirando profundamente o ar fresco da madrugada que Ying brindou à sua chegada ao Santuário. Conseguira o seu objetivo afinal, após tantos anos e treinamento. Precisara, no entanto, despender um grande gasto de energia para empreender aquela viagem e aquele fora um dia cansativo e cheio de emoções. Estava exausta, porém feliz. Mas uma estranheza lhe assaltava a mente naquele instante: onde estaria seu irmão Saga? Por que ele não estava lá para recebê-la e apresentá-la ao Mestre?
Com certeza ele estará aqui em poucos minutos. – sorriu Ying, procurando tranqüilizar-se. – Assim que sentir a minha cosmoenergia ele virá ao meu encontro.
Foi então que aconteceu algo inesperado para ela. De repente, Ying viu-se cercada por cerca de uma dúzia de soldados.
– Quem é você? Como chegou até aqui? E como se atreve a invadir o Santuário de Athena desta maneira? – gritou-lhe um dos soldados.
Instintivamente, Ying recuou um passo para se pôr em guarda para lutar, se fosse o caso. Sentiu, então, o chão começar a se desfazer atrás de si. Olhando para trás, viu que tornara a se materializar na beira de um enorme abismo, estando, portanto, encurralada.
Hipólita tinha razão quanto ao risco dessa viagem. Mais um pouco e eu teria ressurgido no vazio! Tive muita sorte. – pensou ela, e disse, em voz alta, desafiadora:
– Como ousam dirigirem-se a mim nesses termos tão ofensivos? Em primeiro lugar, não estou invadindo, fui convidada a vir aqui! Sou a prin… – Ying, então, corrigiu-se a tempo, lembrando-se de que seu título não tinha mais nenhuma importância. – Sou Ying de Gêmeos, irmã do Cavaleiro de Ouro Saga e, como podem ver por minha armadura, também sou um Cavaleiro de Ouro.
Alguns soldados recuaram assustados e respeitosos, mas a maioria riu à grande das palavras de Ying, o que a deixou ainda mais exasperada. O soldado que a interpelara, o qual parecia ser o chefe, falou, às gargalhadas:
– Você?! Uma mulher, Cavaleiro de Ouro?! Ainda mais alguém tão bela… – disse, lançando-lhe um olhar nada lisonjeiro. – Ora, você não pode ser um Cavaleiro, muito menos um Cavaleiro de Ouro. Nem ao menos usa uma máscara! Será que não conhece a lei aplicada às mulheres-cavaleiro?
– Sou uma princesa Amazona!! – explodiu Ying, furiosa. – E nós, verdadeiras Amazonas, somos guerreiras há muitas gerações e nunca precisamos nos esconder atrás de máscaras. Athena é nossa aliada, desde a Era Mitológica e jamais exigiu isso de nós! Vocês, homens, é que inventaram essa lei ignóbil! Já disse: sou um Cavaleiro de Ouro, assim como meu irmão Saga e exijo que me respeitem como tal e me deixem passar!
– Lamento, mas é impossível, senhora princesa-cavaleiro. – respondeu o soldado, ainda zombeteiro.
– Então, chame meu irmão ou o Mestre!
– Não creio que seja necessário incomodar o Cavaleiro Saga ou o Mestre a esta hora… – disse ele, umedecendo os lábios com a língua, num gesto asqueroso. – Acho que nós mesmos podemos resolver esse problema… – e começaram a aproximar-se lentamente, fechando o cerco.
– Entendo. Vejo que não tenho outra saída senão lutar com vocês. Bem, primeiramente, vamos inverter a situação. – e deu um salto espetacular, colocando-se atrás deles, de modo que eles ficassem encurralados na beirada do penhasco.
Os soldados pararam, um tanto admirados, mas continuaram a avançar sobre ela. A luta, então, começou acirrada, com nítida vantagem para Ying, que se movimentava como um corisco. Em poucos minutos, só restavam dois ou três de pé.
Nesse momento chegou Ayoros, atraído pelo cosmo de Ying e pelos ruídos da luta.
– O que está havendo aqui? – perguntou ele.
Ying e os guardas restantes imediatamente pararam de lutar e o chefe deles, que mal se agüentava de pé, respondeu:
– Senhor, essa mulher é um demônio! Ela invadiu o Santuário e insiste em dizer que é um Cavaleiro de Ouro. Nós tentamos detê-la, mas…
Ayoros, no entanto, não ouvia mais nada do que ele dizia e nem Ying. Os olhos de ambos haviam se encontrado e algo extraordinário aconteceu: Ayoros não via mais nada além de Ying; Ying não via mais nada além de Ayoros.
Diante dos olhos da atônita Ying, o antigo sonho que a perseguia há anos passou em uma questão de segundos, com uma nitidez nunca vista antes no rosto do centauro: era ele!! O jovem que estava à sua frente era o homem de seus sonhos! Ying não queria acreditar no que via, mas suas dúvidas desapareceram completamente quando ele, tão perturbado quanto ela, se apresentou:
– Sou Ayoros, o Cavaleiro de Ouro de Sagitário. E você, que veste também uma armadura dourada, como se chama?
Sagitário!! O Centauro do Zodíaco! Então era esse o significado daquela estranha figura do meu sonho. Não resta mais dúvida alguma, é ele! – pensou Ying,tentando disfarçar a sua perturbação. Procurando desesperadamente controlar-se, ela respondeu, com voz firme e pausada:
– Meu nome é Ying, acabo de receber esta armadura de ouro após anos de treinamento e vim até o Santuário para ser reconhecida pelo Mestre como um Cavaleiro de Ouro e assim poder ficar ao lado de meu irmão na guarda de sua Casa e em defesa de Athena e da Paz na Terra.
– E qual dos Cavaleiros é seu irmão? Qual é a Casa que ele representa?
Antes que Ying pudesse responder, outro personagem apareceu em cena e respondeu por ela:
– Eu, Saga de Gêmeos. Ying é minha irmã gêmea e a chamei aqui com a permissão do Mestre, é claro.
– Saga! – exclamaram os dois ao mesmo tempo.
Com sua aguçada perspicácia, Saga, ao primeiro olhar para Ying e Ayoros, percebeu que estava acontecendo algo entre os dois e entendeu logo o que era, mas preferiu guardar para si e inquirir sua irmã mais tarde. Dirigindo-se a ela, sorrindo, ele falou:
– Seja bem vinda ao Santuário, querida irmã! É um grande prazer vê-la pessoalmente após tanto tempo de separação.
– Bem vinda? Não sei não… Não era bem esse o tipo de recepção que eu imaginava ter. – respondeu Ying, mostrando com um gesto os guardas inconscientes. – Afinal, onde estava? Dormindo, por acaso?
– Não fique zangada comigo, Ying. Você tem que admitir que chegou em uma hora um tanto insólita.
– Tem razão, mas é que eu ainda tinha algumas coisas pendentes a resolver, antes de poder vir. Mas isso não é desculpa, Saga. Não gostei de ter sido recebida como se fosse uma intrusa!
– Sinto muito por isso. – disse Saga, lançando um outro olhar sobre os soldados. – Esses guardas ou são idiotas ou são zelosos demais. Eu já havia avisado que estávamos esperando um novo Cavaleiro de Ouro que chegaria a qualquer momento. Se serve de consolo, eles tiveram a mesma reação comigo quando fui procurar o Mestre para falar sobre você.
– Hum! Acho que, talvez, eles não esperassem uma mulher…
– É possível. Ainda mais uma que não usa máscara. Nós já não havíamos falado sobre isso?
– Sim, havíamos. Mas lembro também de ter lhe dito que uma verdadeira Amazona não precisa se esconder atrás de uma máscara.
– É verdade. Sabe que por mim isso não tem a menor importância, mas pode vir a causar problemas com os outros Cavaleiros. Você já teve uma amostra disso.
– Não me importo. Estou disposta a enfrentar qualquer obstáculo.
– Assim é que se fala! De qualquer forma, resolveremos isso depois. Você parece exausta. Vou levá-la para a minha Casa para que possa descansar. Mais tarde a levarei para conhecer o Mestre e os outros Cavaleiros.
Nesse momento, foram interrompidos por um discreto pigarro.
– O quê? Oh, desculpe, meu amigo Ayoros! Acredite, não foi minha intenção ignorá-lo. Acho que foi a emoção de rever minha irmã. – desculpou-se Saga.
– Não se preocupe com isso, Saga. Eu entendo perfeitamente. Apenas gostaria de dizer, embora ninguém tenha pedido minha opinião ainda, que, de minha parte, não me incomoda nem um pouco o fato de sua irmã não usar uma máscara. Afinal, se a própria Athena tomou armas em defesa da Terra, por que as outras mulheres também não podem lutar lado a lado com os homens sem a necessidade de subterfúgios? Portanto, seja bem vinda ao Santuário, Ying!
– Obrigada, Cavaleiro de Sagitário. É bom saber que pensa assim. – respondeu Ying, já tendo recuperado totalmente o seu autocontrole.
– Entretanto, creio que Saga tem razão em se preocupar, pois nem todos pensam como eu. Com certeza, poderá enfrentar represálias.
– Não precisa se preocupar. – respondeu Ying, com altivez. – Sei cuidar de mim mesma.
– Não tenho a menor dúvida. Fui testemunha disso. – respondeu Ayoros, com um sorriso. – Bem, agora se me dão licença, vou deixá-los a sós para que possam matar as saudades mais à vontade.
– Obrigado, meu amigo. Nos veremos mais tarde. – despediu-se Saga.
– Até logo, Saga. Ying…
Ela limitou-se a um leve aceno de cabeça e Ayoros, então, se retirou.
Discretamente, ela o acompanhou com o olhar, o que não passou despercebido a Saga. Disfarçando um sorriso malicioso, ele apressou-se a comentar:
– Mas deixe-me olhar para você, minha irmã… – disse enquanto a rodeava.__ Você ficou muito bem com a armadura de ouro! Conseguiu ficar ainda mais bonita, o que eu julgava impossível!
– Hipólita disse a mesma coisa. Também me sinto muito bem com ela. É tão leve! Enquanto estava lutando com os soldados, era como se não a estivesse vestindo. Até que esse pequeno contratempo serviu como um bom teste.
– Humm… Não sei se o que aconteceu pode ser considerado como um teste, mas creio que brevemente você irá passar por uma verdadeira prova de fogo.
– Você por acaso está se referindo…
– Exatamente. É bem provável que seja necessário enfrentar um ou mais Cavaleiros de Ouro. Não creio que todos sejam tão liberais quanto Ayoros, mas não se preocupe por enquanto. Vamos para a Casa de Gêmeos e, no caminho, lhe apresentarei a dois amigos meus, os Cavaleiros de Áries e de Touro. Esses, pelo menos, tenho certeza que a receberão bem.
– Está certo, meu irmão. Então vamos.
Eles já se punham à caminho quando Ying, de repente, estacou, subitamente alerta.
– O que foi? – perguntou Saga, curioso.
Ying não respondeu logo. Parecia estar em transe; todos os seus sentidos de prontidão, com o instinto acumulado durante gerações de um povo guerreiro.
– Não sei… Sinto que há alguém aqui…oculto nas sombras… – murmurou Ying, mais para si mesma, enquanto perscrutava o ambiente. – Posso sentir a sua energia…está bem perto de nós…é forte e… terrivelmente maligna!… É estranho, ela parece quase… familiar! Você não está sentindo? Espere! Sumiu! A cosmoenergia desapareceu!
Saga olhou em volta, parecendo inquieto.
– É, eu também senti algo ou alguém nos arredores. Bem, seja lá quem for, já se foi. Façamos o mesmo. Depois investigaremos do que se tratava. Pode ser que não seja nada demais.
Sorrindo, Saga estendeu-lhe a mão, convidando-a para prosseguirem juntos. Ying o fitou e ainda hesitou, desconfiada, mas acabou balançando a cabeça, concordando. Não lhe escapou a presença de uma estranha sombra que passou pelo olhar do irmão, mas ela preferiu não comentar nada por hora.
O que há com Saga? – pensou Ying, intrigada. – Não creio que tenha sido nada! Tenho certeza de que senti a presença do Mal neste lugar. De qualquer forma, ele tem razão: quem ou o que quer tenha sido já foi embora. No entanto, sem dúvida alguma, mais cedo ou mais tarde, voltará a se manifestar. Não o temo. Quando acontecer, estarei pronta. Será que Saga sabe do que se trata e não quer me contar? Mas, por que?
Entretanto, se fosse possível a Ying sondar os pensamentos de Saga naquele momento, leria apenas uma palavra: Kannon.
Continua…
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