– Ayoros!! Finalmente o encontro!! – bradou um indignado adolescente por trás do distraído Cavaleiro. – Procurei você por todo o Santuário!

Era um garoto de cerca de 14 anos, bastante desenvolvido para sua idade e muito parecido com Ayoros, principalmente nos revoltos cabelos castanhos e na expressão determinada dos olhos cor de mel. Era Ayolia, seu irmão caçula.

Ayoros se voltou prontamente e perguntou, surpreso:

– Ayolia!! O que está fazendo aqui?

– O que você está fazendo aqui, ora! Por acaso, não vamos treinar hoje?

– Ah, é verdade! – Ayoros bateu na testa. – Desculpe-me, irmãozinho, esqueci completamente; mas é que acabei demorando mais do que pretendia.

– Fazendo o quê?

– Ofereci-me para mostrar o Santuário à nossa nova companheira, Ying de Gêmeos.

– O quê?!! Uma mulher, Cavaleiro de Ouro?!! Humm… Isso é realmente novidade… – ele deu uma risadinha. – Até que é um bom motivo para o seu atraso… Mas, se isso é verdade, então onde ela está? – perguntou Ayolia, olhando em volta.

Ayoros riu e deu de ombros.

– Bem, disse a ela que poderia ir conhecer as outras mulheres-cavaleiro do Santuário no campo próximo daqui. Parece que ela gostou tanto da idéia que me esqueceu aqui à sua espera.

– Então, realmente, por causa de uma mulher, deixou seu irmão esperando durante horas! Se fosse eu que me atrasasse, qualquer que fosse o motivo, ouviria um sermão interminável sobre o indispensável senso de responsabilidade, etc, etc…

– Não faça drama, Ayolia. Você já está bem crescido e treinamos juntos desde que você tinha cinco anos. Além do mais, Hargos, meu discípulo, que já está praticamente pronto para receber a armadura de Lince, podia ir adiantando as coisas

– Ah, agora sou uma criança… – disse Ayolia, erguendo uma sobrancelha e fazendo força para não rir. – Irmão, não só já não sou mais nenhuma criança, como não sou nenhum tolo e acho que conheço você o suficiente para saber que não se atrasaria para um treinamento por causa de uma garota, sendo nova aqui ou não, a não ser que ela o tivesse impressionado bastante. Estou errado?

Ayoros não pôde deixar de sorrir. Sempre se surpreendia com o quanto o jovem Ayolia sabia ser adulto de vez em quando. Talvez fosse o duro treinamento para se tornar um Cavaleiro ou por terem perdido os pais tão cedo… Ele somente esperava que soubesse educá-lo na medida certa a fim de não fazer seu irmãozinho amadurecer cedo demais.

Ao pensar assim, Ayoros teve um ligeiro estremecimento, como se fosse uma premonição. Para disfarçar sua perturbação, ele falou, jovial:

– Está bem, seu espertinho! Eu admito. Ying realmente me impressionou, de uma maneira que ainda não sei bem explicar… – seu olhar assumiu uma expressão vaga por instantes. – É quase como se já a tivesse conhecido antes… Mas, isso não significa, de maneira alguma, que eu esteja apaixonado por ela.

– Ei, sou seu irmão, lembra-se? Não precisa esconder nada de mim…embora ache que talvez esteja tentando, na verdade, é esconder de si mesmo.

– Agora chega, Ayolia! – disse Ayoros, exasperado. – Volte para a Casa de Sagitário e irei encontrá-lo assim que me livrar dela. Vá!

Ayolia não se zangou e simulando um respeitoso cumprimento de despedida, deu largas à sua hilaridade, saindo correndo dali às gargalhadas.

Ayoros ainda balançava a cabeça, irritado, quando Ying apareceu.

– Atrapalho alguma coisa?

– Hã?! Ah, é você, Ying. Está aí há muito tempo?

– Não, acabei de chegar. – mentiu ela. – Quem era aquele garoto que estava com você?

– Era meu irmão mais novo, Ayolia. Ele veio me lembrar de que tínhamos treinamento hoje. Ele será o futuro Cavaleiro de Leão e sou seu mestre desde que nossos pais morreram quando ele ainda era pequeno.

– Sendo você além de irmão mais velho também seu mestre então deveria dar o bom exemplo, não se atrasando para os treinamentos. Não me parece o comportamento do modelo de responsabilidade que seus amigos descreveram. – disse Ying, deliberadamente irônica. – Creio que não deveria ter me convidado para um passeio se tinha compromisso anterior.

– Mas…

– Em todo caso, sei que sou em parte responsável por esse atraso. – cortou Ying bruscamente. – Acabei me demorando mais do que pensei em razão de um imprevisto. Queira aceitar minhas desculpas por tê-lo deixado esperando. Não faça o mesmo com seu irmão. Até logo. – e virou-lhe as costas, afastando-se.

– Espere! – gritou Ayoros, ainda atônito. – Eu a acompanharei até Gêmeos.

– Não será necessário. – disse ela sem se voltar. – Sou capaz de encontrar o caminho sozinha. E, antes que me esqueça, obrigada por me mostrar o Santuário.

– Mas nós nem começamos! – insistiu Ayoros, desolado. – Pelo menos deixe-me levá-la amanhã para que veja o que ficou faltando.

– Repito que não será necessário. Adeus! – e desapareceu.

Ayoros ficou ainda alguns instantes de boca aberta, olhando para o lugar onde ela estava. Não conseguia entender a súbita mudança de atitude de Ying, retornando à frieza inicial, quando parecia que já começavam a se entender.

Mas que garota mais difícil! – pensou ele, irritado. – Se ela pensa que vai me fazer de idiota assim… e descarregou a sua raiva dando um soco que arrasou uma rocha ao seu lado.

Mais calmo, Ayoros sentou-se, taciturno. Entretanto, seu semblante iluminou-se subitamente com uma idéia que lhe veio à mente:

O Mestre disse certa vez que as coisas – ou as pessoas – nem sempre são o que parecem ser; talvez ele esteja certo e Saga também. Ela está se defendendo! Provavelmente, está tão perturbada quanto eu e não quer admitir para si mesma que sente algo por mim e que não é indiferença e desprezo. Também não está sendo muito cômodo para mim admitir isso, mas há certas coisas das quais não podemos fugir. Ela não perde por esperar! Não vou desistir assim tão fácil!

********

Ying não sabia como, mas lá estava ela de novo, na manhã seguinte, caminhando ao lado do envolvente Ayoros, após ter jurado a si mesma que somente tornaria a vê-lo no dia do Conselho. Passara uma noite infernal, perseguida pelo famigerado pesadelo e por sentimentos contraditórios que tentara inutilmente calar. Entretanto, mesmo tendo resolvido terminantemente não aceitar mais nenhum convite da parte dele, lá estava ela outra vez. “Como se deixara convencer tão facilmente? Seria assim tão fraca?”, Ying se perguntava, olhando disfarçadamente para o rosto franco e sorridente do Cavaleiro.

– Hoje vou levá-la para conhecer a aldeia de pescadores que fica além dos limites do Santuário. Tenho certeza de que irá gostar. Talvez ache as pessoas um pouco arredias a princípio, mas, na verdade, o povo é muito simpático. Além disso, são fiéis à Athena há muitas gerações.

– Não é proibido sair do Santuário sem a permissão do Mestre? – perguntou Ying, glacial.

– O Mestre disse que poderíamos ir onde quiséssemos. Estou certo de que ele não se importará.

– Bem, se você está dizendo…De qualquer jeito, creio que será uma experiência interessante.

Ayoros olhou para ela, curioso.

– É a primeira vez que sai do Vale das Amazonas? – subitamente constrangido, apressou-se a acrescentar: – Não que pareça isso, quero dizer… Desculpe se pareço indiscreto. Não precisa responder se não quiser.

Aparentando ainda impassibilidade, mas sorrindo interiormente ante o esforço dele em não desagradá-la, ela respondeu com ar distraído, como se estivesse concentrada em observar a paisagem:

– Para falar a verdade, não. Já havia saído algumas vezes quando era aspirante, acompanhando algumas das guerreiras mais experientes em missões de reconhecimento e pesquisa e também depois que assumi o comando, mas sempre estávamos disfarçadas… É engraçado, pois ainda tenho a sensação de estar disfarçada. Acho que ainda não me adaptei totalmente à minha nova situação de Cavaleiro.

Ayoros balançou a cabeça, concordando.

– Compreendo o que quer dizer. Não se preocupe, logo irá se acostumar. No princípio, é natural sentir-se assim. Afinal, foi uma grande mudança para você: deixou sua terra natal, suas companheiras, sua posição… Sei que havia me dito que não se importava com isso, mas mesmo assim deve ser difícil.

– De certa forma, é verdade… – ela concordou, mas como se despertasse de um sonho, revestiu-se novamente em sua capa de indiferença. – Entretanto, como você mesmo disse, está sendo indiscreto. Não tenho a obrigação de discutir meus sentimentos com você. Aliás, nem acredito que um homem compreenda realmente essas coisas.

Ayoros corou, ofendido em seu orgulho masculino e chegou a abrir a boca para revidar o insulto, mas logo mudou de idéia, sacudindo a cabeça com um sorriso divertido e replicou tranqüilamente:

– Talvez tenha razão. Nós não compreendemos muitas coisas em vocês, mulheres, mas a recíproca é verdadeira; vocês também não compreendem muitas coisas em nós. Também temos sentimentos, sabia? – ele fez uma pequena pausa, observando o efeito de suas palavras e continuou: – Em minha opinião, enquanto seres humanos , ainda temos muito o que aprender uns sobre os outros; ou, caso contrário, estaríamos entre os deuses, não acha?

Ying não esperava por essa resposta e parou olhando para ele uns instantes, após os quais respondeu, hesitante:

– Eu…eh… Desculpe se o ofendi, mas… Bem, é que nós, Amazonas, somos condicionadas desde a infância a desprezar os homens como criaturas insensíveis e cruéis. Não pude evitar.

– Não se incomode. Afinal, também há preconceitos aqui, ou não haveria essa tradição idiota em relação às máscaras femininas. Nunca fui favorável a isso, meu pai também não era; como pode ver, nem todos os homens são iguais.

– Suas palavras me lembram as de minha antiga mestra, Nevara. Como é possível?

– A sabedoria e o bom-senso não são privilégios de apenas um povo; são um patrimônio da Humanidade ofertado pelos deuses. Meus pais me ensinaram que os sentimentos, as qualidades e os defeitos são independentes do sexo. Não há nenhum sentido nessa eterna disputa entre homens e mulheres porque não somos uns melhores do que os outros. Todos somos iguais perante Aquele que criou tudo.

Ying não sabia o que pensar. Estava verdadeiramente impressionada pelas idéias de Ayoros, que ela reconhecia intimamente coincidirem com as suas; entretanto, a desconfiança atávica ainda era muito forte.

– Você fala muito bem…Mas, como posso saber se essas idéias não estão apenas em seu lábios mas também em seu coração?

– Isso só o tempo dirá. Você viverá aqui de agora em diante, basta que observe meu comportamento; mesmo que eu quisesse, não poderia dissimular vinte e quatro horas por dia. Portanto, quando me conhecer melhor, poderá tirar suas próprias conclusões; e como já disse antes, não precisa se defender de mim.

– Como você disse, deixe que eu mesma decida. – disse ela, rispidamente.

– Como quiser. – concordou Ayoros, sorrindo.

Como chegassem a um trecho mais acidentado da trilha, Ayoros tomou a dianteira e alertou:

– Tenha cuidado agora. Este caminho é traiçoeiro para quem não o conhece bem. Quer que eu a ajude a descer? – perguntou, estendendo-lhe a mão, solícito.

– Já disse que sei cuidar de mim mes… – Ying ia dizendo quando seu pé falseou em uma pedra solta e ela perdeu o equilíbrio, caindo nos braços de Ayoros.

Olhos nos olhos, o magnetismo entre eles multiplicado pelo contato físico fez com que a magia do primeiro encontro se repetisse, mas com intensidade ainda maior. Ambos sentiam como se nada no mundo existisse mais além deles, o próprio Universo havia perdido seu significado e o tempo havia parado. A cosmoenergia deles se harmonizou, seus corações batiam em uníssono, a respiração assumiu o mesmo ritmo e o sangue corria na mesma velocidade em suas veias; as mentes se abriram uma para a outra, cenas de um passado distante e esquecido passavam com uma rapidez vertiginosa; eles se viram com outra aparência, souberam ter tido outros nomes e diferentes tipos de relacionamento entre si, mas o amor que sentiam era o mesmo. A alegria do reencontro e o entendimento de que estariam sempre juntos foi tão grande que, de repente, chegou ao ponto de que já não tinham mais consciência de si mesmos; agora eles eram um só. Como para consumar aquela comunhão, as bocas foram se aproximando, ávidas, sedentas uma da outra, quando, subitamente:

– Solte-me!! – gritou Ying, empurrando Ayoros, os olhos muito abertos, em pânico. – O que pensa que está fazendo?!

– O quê…?! – Ayoros olhou-a aturdido, sem entender bem o que havia acontecido nem porque havia acabado daquela maneira tão brusca. – Ora essa! Você caiu nos meus braços! Foi isso o que aconteceu! Eu só a segurei; o que você queria que eu fizesse? A deixasse cair? Eu avisei para tomar cuidado onde pisava; se tivesse aceitado minha ajuda…

– Ora, cale-se! – exclamou ela, ainda ofegante, e acrescentou com o dedo em riste. – Estou lhe avisando, Cavaleiro, se não ficar longe de mim esquecerei que é um companheiro e mostrarei o que uma Amazona é capaz de fazer com um intruso!!

– Devo lembrá-la de que você é a estranha aqui e de que eu lhe ofereci minha amizade… – replicou Ayoros, magoado. – Entretanto, se prefere rejeitá-la, não se preocupe que não vou forçá-la a nada. De qualquer maneira, vou até a aldeia. Se quiser me acompanhar, poderei mostrá-la a você como havia prometido. Caso contrário, não se sinta obrigada, pode voltar para junto de seu irmão.

Dizendo isso, ele virou-lhe as costas e continuou andando, sem olhar para trás. Ying ficou parada, olhando para ele abismada, observando-o afastar-se.

É isso mesmo o que vou fazer! O que ele está pensando? Que vou me apaixonar assim, pelo primeiro homem que conheci? Jamais me apaixonarei, já jurei isso um dia! – pensou Ying, furiosa. No entanto, suas pernas recusavam-se a fazer outro caminho. – Ou será que… Oh, não!! O que está havendo comigo? Por que não consigo simplesmente virar as costas e ir embora? Será que já me apaixonei por aquele homem? Não, não!! Oh, deusas Athena e Artêmis, ajudem-me! Serei assim tão fraca? – ela balançava a cabeça, desesperada, e as lágrimas teimavam em descer por mais que elas as enxugasse com força. – Ele deve ser um bruxo, um terrível feiticeiro, é isso! Ele me enfeitiçou, mas não me deixarei dominar; isso nunca!!

Observando o vulto dele já a uma certa distância, o seu olhar, inconscientemente, suavizou-se, mas seu rosto assumiu a expressão grave de quem acaba de tomar uma séria resolução:

Feitiço ou não, seja como for, não lhe desejo nenhum mal e é por isso que devo controlar o meu coração a qualquer custo. – pensou Ying, com um sentido suspiro. – Pelo meu bem e principalmente pelo bem dele, é preciso que nos afastemos um do outro. Voltarei para Gêmeos agora. É melhor que ele pense que sou uma tola arrogante e passe a votar indiferença e desprezo por mim. Com o tempo, Ayoros nada mais significará para mim e até seu nome farei por esquecer; então, pode ser também que aquele pesadelo pare de me atormentar. Que os deuses assim permitam!

Com o coração pesado, ela tomou a direção da Casa de Gêmeos.

Ayoros ainda sentia uma certa confusão mental após o súbito rompimento do contato entre a sua mente e a de Ying. Jamais experimentara qualquer coisa assim; era como se tivesse sido arrebatado junto com ela por uma torrente inebriante de sentimentos e sensações misturadas, mas entre as quais prevalecia o amor, um grande amor, antigo e renovado através dos séculos; cheio de diferentes nuances, pois sentia que ao mesmo tempo que era intenso e desesperado, tornava-se também sereno e amadurecido. Como podia ser assim se haviam acabado de se conhecer? No entanto, durante aqueles breves instantes tudo parecia completamente claro e natural; estranha e tola era a maneira como haviam se comportado até então. Porém, quando a fusão das mentes era cada vez mais crescente e intensa, tudo se quebrou e de um modo tão repentino e violento que o deixou sem ar, ferindo-o mais do que o empurrão físico que Ying lhe dera. Fora um choque tão grande para ele quanto devia ter sido para ela e, embora Ying não demonstrasse, devia estar sentindo a mesma desorientação que ele sentia agora. Ele inspirou profundamente e soltou o ar lentamente, conforme ia se acalmando, ia analisando o que ocorrera entre eles e descobriu que, no meio daquele amálgama de emoções, havia também um grande medo por parte dela; mas não era medo dele como pensava, mas por ele. Apesar de um pouco surpreso, Ayoros não estranhou esse medo, como seria de se esperar, isso porque ele conhecia a sua origem; afinal, também já o sentira, mas o superara antes mesmo que se encontrassem pela primeira vez no Santuário. Precisava ensinar a ela como superá-lo também, fazer com que ela descobrisse que não tinha a menor importância, pois eles tinham uma grande missão a cumprir – embora ainda não soubesse qual seria – e que não importava o que acontecesse com eles, pois, de qualquer modo, estariam sempre juntos.

Sacudindo um pouco o torpor que ameaçava se apossar dele, Ayoros, percebendo que já se aproximava da aldeia que tanto amava, esforçou-se por recuperar sua alegria habitual e começou a cantar uma velha canção de pescadores, a qual o identificava sempre quando de sua chegada àquele lugar.

Como se atraídas pelo lendário flautista de Hamelin, várias crianças acorreram de todos os lados, agarrando-se às mãos de Ayoros, dependurando-se à cavalo em seus ombros fortes e seguindo atrás dele, felizes, cantando junto com seu grande amigo. Alguns camponeses, largando seu trabalho por alguns instantes, também resolveram seguir junto com seus filhos e netos, acompanhando com suas rudes vozes o alegre cortejo.

Era sempre uma festa a chegada do Cavaleiro de Sagitário àquela humilde aldeia, a qual ele chamava com orgulho, para quem quisesse ouvir, de seu verdadeiro lar. Para aquela gente simples, composta de camponeses e pescadores, Ayoros era mais do que um respeitado e admirado Cavaleiro de Athena: era um verdadeiro filho, irmão, amigo, sempre disposto a ajudar, seja durante a época da colheita, na pesca, construção de casas, etc. Enfim, ao contrário da maioria dos Cavaleiros, ele gostava de participar ativamente da vida da aldeia. Sempre se podia contar com ele, a qualquer hora que fosse, para um apoio nas dificuldades, um conselho amigo ou o socorro prestimoso a um doente. Seu jovem irmão Ayolia seguia pelo mesmo caminho, pois sua maior alegria era, no intervalo dos treinamentos, divertir-se na aldeia com seus amigos e ajudá-los em suas tarefas diárias. Naquela manhã ele também estava lá e juntou-se ao alegre grupo que acompanhava Ayoros.

*********

Ying já estava bem próxima da entrada do Santuário quando ouviu ao longe alguém que cantava. Parou imediatamente, surpresa, e se pôs a ouvir, deliciada.

Que voz maravilhosa! Será que Orfeu1 resolveu descer do Olimpo esta manhã?

Sem saber ainda de quem se tratava, Ying resolveu seguir aquele som e descobrir quem era o inspirado cantor. Começou a ouvir que outras vozes se juntavam à primeira,,, entretanto, sem que a sobrepujassem, apenas compondo um belo fundo, um harmonioso coro. Curiosa, ela apressou o passo. Seria alguma festa?

Não demorou muito para localizar a origem do canto e qual não foi sua surpresa ao reconhecer Ayoros à frente do numeroso grupo de camponeses.

Sem saber como nem porque, quase como um autômato, ela foi seguindo atrás deles, não tardando a alcançá-los.

As crianças estranharam um pouco a aparição daquela desconhecida, trajada como uma guerreira, mas sem máscara, no entanto, em razão da sua armadura de ouro, reconheceram-na como uma companheira de Ayoros e acolheram-na de bom grado, dando-lhe as mãos e instando-a a cantar também. Ying, ainda aturdida com aquela situação insólita, acedeu timidamente, apenas movendo os lábios.

Seguindo na frente de todos, Ayoros não precisou se virar para saber que ela havia se juntado ao grupo. Sorrindo, verdadeiramente satisfeito agora, continuou a cantar com energia redobrada.

Ayoros terminou a canção no momento em que chegaram à aldeia. Olhando-a, agradecido, Ayoros chamou Ying para perto de si a fim de apresentá-la aos aldeões. Estes, alertados pelas crianças de que seu velho amigo chegara acompanhado de uma nova guerreira, já se aproximavam juntamente com Alceus, o chefe do vilarejo, para saudá-los.

Para que não fossem compreendidos, Ying sussurrou para Ayoros em grego arcaico:

– Não fique convencido, mas é verdade que vim até aqui atraída pela sua maravilhosa música e durante o caminho vim pensando… Gostaria de me desculpar pelas palavras duras que disse agora há pouco. Sei que tem se esforçado ao máximo para ser gentil e tenho me comportado de maneira muito rude. No entanto, é bom que uma coisa fique bem clara, Ayoros: seja o que for que tenha acontecido conosco durante aquele…incidente, minhas resoluções não se modificaram; podemos ser amigos ou apenas companheiros de armas, se quiser, mas é só. Está me entendendo?

Ayoros suspirou, lançando-lhe um olhar triste e replicou:

– Pensei que havia compartilhado comigo, durante aqueles momentos de intimidade absoluta, da certeza de que a nossa relação era muito mais profunda e antiga do que isso, pois ela existe muito antes mesmo de que nos víssemos pela primeira vez nesta vida. Na verdade, pelo brilho que vejo em seus olhos, acredito que saiba do que estou falando; no entanto, se prefere assim, não insistirei mais… Pelo menos, até que descubra um meio de fazê-la vencer esse medo.

Dominando-se à custo para manter a voz baixa, ela perguntou, indignada:

– Do que está falando? Eu não tenho medo de …

– Ssshh!! – cortou Ayoros, bruscamente. – Depois falaremos sobre isso. Os aldeões estão vindo.

– Saudações, amigo Ayoros! – disse, sorrindo e apertando-lhe as mãos com evidente prazer, um homem alto, já entrado em anos, como aparentava pelas rugas em seu rosto e pelos fios de cabelo que começavam a rarear em sua longa cabeleira prateada. Tinha um olhar límpido, porém perscrutador e um tal ar de majestade que impressionou Ying profundamente. – É sempre um prazer recebê-lo em nossa humilde aldeia e ainda mais hoje que vem em tão bela companhia. – voltando-se para Ying, ele acrescentou em tom amável e respeitoso, vendo que ela se empertigara. – Perdoe-nos se a ofendemos com a nossa admiração, senhora, mas deve compreender que as mulheres guerreiras não são muito comuns por aqui, em particular as que não ocultam sua identidade, e há muito não vemos nenhuma envergando o honroso traje dos Cavaleiros de Ouro. Sou Alceus, o líder da aldeia, honra a mim conferida por meus irmãos por ser o mais velho e em nome de todos lhe ofereço as boas vindas.

Um tanto hesitante, Ying aceitou a mão estendida do ancião e respondeu, solene:

– Aceito as boas vindas, venerável Alceus e agradeço, sinceramente comovida, a agradável acolhida que tive aqui, bem diferente, aliás, da truculenta recepção que tive ao chegar ao Santuário. Sei que mulheres guerreiras são minoria por aqui, inclusive, já tive oportunidade de conhecê-las; no entanto, venho de um lugar onde elas são a regra e não a exceção, e nenhuma tem a necessidade de se ocultar, pois suas próprias habilidades as defendem e os homens lhes prestam o respeito devido. Como origem materna, descendo da antiga linhagem das guerreiras Amazonas, mas meu pai era um Cavaleiro de Ouro, assim como meu irmão gêmeo e mestre, Saga de Gêmeos, e por isso aqui estou. Meu nome é Ying e sou um Cavaleiro de Ouro por meu cosmo e treinamento, mas somente serei oficialmente Ying de Gêmeos, como pretendo, se for aprovada pelo próximo Conselho e vencer o Desafio que me será imposto, quebrando assim um dos mais antigos tabus deste Santuário.

Alceus balançou a cabeça lentamente, observando-a da mesma maneira que o Mestre havia feito, como se pudesse enxergar-lhe a alma, e disse, abraçando-a, para a surpresa de todos.

– Árdua é a sua tarefa e difícil o seu destino, filha, mas o seu espírito é forte e não esmorecerá. Tenho certeza de que terá sucesso onde a valorosa Denora, que você conheceu, acabou malogrando; porém, a prova suprema ainda virá e deverá estar preparada, pois superá-la dependerá apenas de você. Que Athena a acompanhe e que você consiga cumprir o seu papel junto a ela.

Ying estremeceu, seja pela falta de costume ao contato físico, seja pelas palavras proféticas de Alceus, que ecoavam em seus ouvidos assim como as do Mestre dos Cavaleiros. Quando o velho se afastou, ela respondeu, procurando firmar a voz:

– Desde já eu juro lutar juntamente com os outros Cavaleiros e dar a minha vida se preciso for para defender Athena e assegurar a Paz da Humanidade, começando por esta aldeia.

Alceus assentiu como se não esperasse outra coisa dela e disse:

– Quisera que isso nunca acontecesse, entretanto, infelizmente, é certo que o dia da Grande Batalha chegará, mas espero que ainda demore muito tempo… – e concluiu, desanuviando a fisionomia concentrada. – Enquanto não acontece, divirtam-se, meus filhos. Está uma bela manhã, Ayoros; por que não leva Ying para conhecer o restante da aldeia? – ele sorriu para ela, como se pedisse desculpas. – É verdade que não há muito que se ver, nosso vilarejo é muito humilde, mas temos uma pequena feira com produtos e comidas típicas da região; tenho certeza de que irá achar interessante. Depois faço questão de que venham almoçar em minha casa. Até mais tarde.

Ele afastou-se, dispersando assim os outros aldeões, que retornaram aos seus afazeres habituais, lançando, é claro, de vez em quando, ainda alguns olhares curiosos para a recém-chegada.

Sem dizer nada, Ying lançou um olhar inquiridor para Ayoros, que deu de ombros e disse simplesmente:

– Acho que ele gostou de você. Vamos?

Ying concordou e eles começaram a andar pela aldeia. Com seu jeito cativante e alegre, Ayoros falava tudo sobre a origem daquele povoado, os costumes do povo da região e suas histórias e lendas. Quando chegaram ao mercado, ele discorreu sobre o artesanato local, as criações de animais e agricultura, as épocas de pesca, principal atividade do lugar e muitas outras coisas.

Esquecida de seus temores e preocupações, Ying não conseguia mais disfarçar seu interesse e se sentia tão à vontade e feliz ali que era como se nunca tivesse vivido em outro lugar e Ayoros fosse um amigo de longa data. Ela ria e brincava com as pessoas à sua volta como se já as conhecesse desde a infância e elas correspondiam, acolhendo-a como se fosse um deles. Ying não se lembrava de ter se sentido assim tão bem antes, tão solta e despreocupada, sem os salamaleques da corte ou a rígida disciplina do exército.

Procurando disfarçar seu encantamento, Ayoros a observava, embevecido, admirando as novas facetas da personalidade daquela mulher que tanto o impressionara desde a primeira vez que a vira. – Não… – ele pensava. – desde antes… muito antes. Não consigo ter consciência de mim mesmo sem esse amor em meu peito…sem a presença dela em minha vida.

E ele, extasiado, quase conseguia enxergar, por detrás da poeira do tempo, naquela forte e resoluta mulher guerreira, a meiga e risonha menina camponesa de outras eras por quem o feroz príncipe bárbaro se apaixonara há tantos anos atrás.

Nós estamos destinados um ao outro… – pensava Ayoros. – e, no entanto, não podemos…e ela o pressente. – suspirou Ayoros, tristemente. – Sempre juntos, eternamente separados…pelo menos até que resolvamos certas pendências entre nós e consigamos cumprir nossa missão junto à Athena. – ele suspirou novamente. – E pensar que serei quem deverá conduzi-la pela mão até o outro, meu antigo rival, aquele que ainda virá sob a proteção da Cruz do Norte…Isso ainda me entristece, mas pelo menos não o odeio mais e, no meu caso, já é um tremendo progresso. Eu os separei no passado, cabe a mim uni-los novamente. Não posso fraquejar…Não posso…

– Ayoros? Ayoros! Ei, acorde!! O que está havendo com você?! – perguntou Ying, tentando chamar a atenção dele.

– Hein?! O que?!… -falou, piscando os olhos, como quem acaba de despertar. – Ah, desculpe-me, Ying. Eu estava distraído. O que você estava dizendo?

– Nada, só o estava chamando para que conhecêssemos o restante da aldeia, quando então percebi que você totalmente alheio como se sonhasse acordado… No que estava pensando?

– Eu?! – exclamou Ayoros, ainda aturdido, pois realmente não se lembrava direito. – Em nada, quero dizer, nada de importante, na verdade. – pigarreando embaraçado, ele desconversou: – Já lhe mostrei tudo o que havia para conhecer aqui, Ying, eu disse que a aldeia era pequena.

Ele ficou com medo de que ela voltasse à sua frieza habitual, mas Ying pareceu não se importar, sugerindo alegremente:

– Bem, nesse caso, que tal irmos à casa de Alceus? Já está ficando tarde e acredito que não é educado deixarmos nosso anfitrião esperando.

– Tem toda razão. Vamos por aqui então. – disse ele indicando uma ruela à direita. – Por aqui cortaremos caminho através do mercado e logo chegaremos à cabana dele.

********

Haviam andado cerca de uma centena de passos, quando Ayoros percebeu que algo chamara a atenção de Ying. Seguindo a direção de seu olhar, ele viu do que se tratava: um magnífico touro negro.

– É um animal esplêndido, não é? – comentou Ayoros, parando ao lado dela. – O velho Nikolas, o criador de gado da aldeia que fica na ilha vizinha, de vez em quando traz seus animais para vender aqui. Parece que desta vez ele se superou. Não sabia que gostava tanto de gado. Em sua terra, costumam fazer criações?

Ying respondeu com um ar um tanto vago:

– Criamos principalmente cavalos. Quanto à gado, apenas o suficiente para a nossa subsistência. Temos alguns bons reprodutores, mas jamais havia visto um animal tão bonito…

A expressão dela tornou-se subitamente sombria e ela olhou em volta, alerta, como se procurasse alguma coisa ou alguém.

– Algo errado, Ying? – perguntou Ayoros, preocupado.

Ela não respondeu logo. Ainda um pouco tensa, Ying voltou-se para ele e disse, tentando sorrir:

– Não. Não foi nada. Apenas uma sensação estranha…mas já passou. Acho que estou é com fome. Aqueles doces que aquela boa mulher me ofereceu naquela barraca não satisfizeram meu apetite, apesar de estarem deliciosos.

– Sabia que iria gostar. Baklavah1 também é o meu doce favorito, mas espera só até provar as costeletas de carneiro de Nísia, a esposa de Alceus. Já estamos quase chegando.

Eles se puseram à caminho. Antes de segui-lo, Ying ainda deu uma rápida olhada para trás.

Aquela estranha sensação de novo…a mesma que senti quando aqui cheguei, como se houvesse alguma coisa maligna rondando nas sombras. Há algo muito estranho acontecendo neste Santuário ou então prestes a acontecer e eu vou descobrir do que se trata!

– Ying! – chamou Ayoros.

– Estou indo. – ela respondeu, enquanto se dispunha a segui-lo.

********

Continua…

1 Doce típico grego feito com nozes.

1 Cantor legendário, originário da Trácia, filho de uma das Musas. Era também extraordinário poeta e músico, sendo atribuída a ele a invenção da cítara e o aumento das cordas da lira de sete para nove. Segundo a lenda, seu canto era tão melodioso que as próprias feras se deitavam a seus pés para ouvi-lo cantar e as árvores e plantas se curvavam à sua passagem. Participou também da expedição dos argonautas em busca do carneiro de ouro, neutralizando as sereias com a sua música.(Nota da Autora)

-” ”>-‘.’ ”>

A Widcyber está devidamente autorizada pelo autor(a) para publicar este conteúdo. Não copie ou distribua conteúdos originais sem obter os direitos, plágio é crime.

Pesquisa de satisfação: Nos ajude a entender como estamos nos saindo por aqui.

Leia mais Histórias

>
Rolar para o topo