Cena 1 – Próximo ao mar. Vários soldados enfileirados aguardam. Neto chega e é recebido pelas continências. Sem pressa, ele observa cada um dos soldados e se aproxima de um, cabisbaixo.

Neto – Algum problema, soldado?

Soldado – Não, senhor! Só estava concentrando, pensando se vou sobreviver.

Neto – Algum motivo especial?

Soldado – Sim, senhor! Pretendo me casar quando voltar vivo da guerra.

Neto – Alguém mais pretende voltar vivo? Eu, por exemplo, ainda quero viver muito, mesmo sem ter uma esposa ou uma noiva esperando por mim.  E quanto a você soldado, antes do casamento melhor descobrir se ela não é filha de seu pai.

Soldado – Não, senhor! Tenho certeza que não é.

Neto – Sabemos que estamos indo para uma grande guerra. O melhor será o vencedor. – Vira para o soldado – Você vai sobreviver. Basta acreditar nisso. O segredo é acabar com o inimigo antes que ele acabe com você.

Soldado ainda fazendo continência – Me lembrarei sempre disso, senhor!

Neto ameaça se afastar. Outro soldado, todo o tempo, atento na conversa, chama: — General. Com vossa permissão, seu nome é Caio José Neto?

Neto – Sim!

Adalberto sorri – Percebi quem era quando falou com o soldado Binha a respeito da irmã. Sou Adalberto, sobrinho de Dalva. Creio que talvez se lembre dela?

Neto empalidece. Procura disfarçar a tensão que sente: — Sim, recordo-me dela. Lembro-me também de você. Era garoto quando o conheci — sorri. — Vejo que as suas palavras foram verdadeiras.

Adalberto — Pretendo ser um bom capitão, senhor. Quem sabe um dia general também.

Neto — Com certeza será. Seja bem-vindo ao nosso grupo. Estou feliz em vê-lo.

Adalberto murmura feliz — Não mais que eu, senhor.

Neto faz sinal positivo com a cabeça e se afasta. Adalberto o acompanha com o olhar, todo tempo, sem perdê-lo de vista.

 

Cena 2 – Os soldados embarcam no navio e seguem viagem. Neto, sozinho na proa, pensativo, observa a navegação deslizar, serena, entre as águas. Busca na memória a fisionomia de Dalva. (Moça requintada de vinte anos). Adalberto, um pouco distante observa Neto. Suspira fundo e vai até ele e puxa conversa. – O dia está muito quente hoje, General.

Neto disfarça olhando o céu: — Talvez, tenha chuva no final da tarde, mas acredito que a viagem será tranquila.

Adalberto — Eu soube a respeito de sua irmã.

Neto constrangido fita-o, em silêncio. Adalberto percebe: — Desculpa, eu não devia ter falado nesse assunto tão delicado. Com licença.

Neto o impede de sair — Sua tia quem lhe contou? — fica, acanhado. — Fiz uma pergunta idiota. Dalva foi a única pessoa que soube do meu passado. Não sei por que ela lhe contou. Não ser que tenha contado aos seus pais e eles a você.

Adalberto — Ela me contou, um dia, por acaso.

Neto — Como Dalva está? Espero que esteja bem.

Adalberto — Ainda sozinha, esperando o general.

Neto engole a saliva. Sente profunda tristeza. — Dalva deveria ter-se casado com outro, refeito a vida, sem esperar por mim.

Adalberto — Não acredito que ela seria feliz de verdade ao lado de outro, pelo amor que ainda diz sentir pelo senhor. Por muitas vezes vi a mesma tristeza nos olhos de minha tia, como agora vejo nos seus.

Neto — A dor que ainda carrego no peito poderia ter sido evitada com a verdade. Mas a mentira custou a vida de uma pessoa que morreu esperando por alguém que não devia ter voltado para ela, não como voltei. A vida me deu a oportunidade de fazer o certo, e eu não soube aproveitar a chance que recebi. Mesmo conhecendo o verdadeiro amor nos braços de uma mulher, voltei para a outra, que poderia ter sido feliz com o esposo pela oportunidade de vida que ela também recebeu. Porque Deus sabia que o nosso amor era pecado. Hoje, a única coisa que ainda desejo é receber outra chance de vida, do outro lado, para desfazermos, juntos, os erros que cometemos.

Adalberto — Não acredito que o erro seja seu, general, da minha tia nem mesmo da outra.

Neto — Não foram as duas que erraram. Eu é que deveria ter-me deixado levar pelo desejo maior.

Adalberto – O general acredita que do outro lado terá forças suficientes para escolher o desejo maior? Para isso, terá que estar diante das duas novamente para escolher o que diz ser o certo. Pelo que sei o general não sabia que Glorinha era sua meia-irmã. Como então, poderia saber que tomava a decisão certa, se era livre para se apaixonar pelas duas como se apaixonou? Eu não acredito que o erro também seja do general, como pensa. Talvez, esteja se martirizando por algo que não consegue esquecer. Ou, quem sabe, não consegue perdoar aqueles que mentiram. O General já pensou nisso? – Neto fica com os olhos inquietos e relembra o passado.

 

Cena 3 – Cenário. Uma casa de sapé, em meio a floresta.

Glorinha se aproxima de Neto, também com 6 anos. Surpreso ele pergunta – Quem é você? – Glorinha sorri. Neto insiste – De onde você veio?

Caio dentro do rancho enrolava um cordão de fumo, ouve a conversa e chama – Neto, com quem está falando? Onde você está?

Neto – Aqui, vô!

Caio aparece na entrada do rancho e se aproxima das crianças – Quem é você, menina?

Glorinha – Papai! – e alegre, corre ao encontro de José Carlos que chega.

José Carlos pergunta para a filha – Como veio parar aqui?

Caio irônico – Não acredito no que estou vendo.

José Carlos se emociona ao ver o menino e ameaça tocar nele. Caio puxa Neto pelo braço – Vá para dentro do rancho, Neto. Não saia de lá enquanto eu não der ordens. – Neto corre e para na entrada do rancho, volta olhar o avô que pede ao homem – Pegue sua filha e dê o fora daqui!

José Carlos – Não sei como ela veio parar aqui.

Caio dúvida – Vou acreditar que ela adivinhou o caminho.

José Carlos observa o menino e se alegra – Como ele cresceu.

Caio grita – Mandei ficar dentro do rancho, Neto. Obedece ao seu avô.

Neto corre e se esconde em um canto, mas se arrasta de joelhos e volta para a entrada. Vê o avô segurando um pedaço de madeira e José Carlos se afastando com Glorinha. Rapidamente Neto volta para o lugar de antes. Caio entra e fala com ele – Não quero ver você perto daquele homem. Daquela menina. Está me ouvindo, Neto? – Neto balança a cabeça que sim. Caio enrola folhas murchas fazendo um charuto. – E não me faça perguntas que não vou responder. Agora, venha me ajudar. Está na hora de começar aprender alguma coisa boa na sua vida. – Entrega ao garoto um maço de folhas e o ensina enrolar um charuto.

 

Cena 4 – Cenário. O dia amanhece. Dentro do rancho Caio enrola fumo. Neto, do lado de fora, alimenta uma arara e um papagaio. Ele vê Glorinha chegar e corre ao encontro dela – Meu avô vai brigar de novo, vendo você aqui. Melhor ir embora. Ele não quer me ver perto daquele homem.

Glorinha – Aquele homem é meu pai, e ele não vem atrás de mim. Foi na vila. – mexe os ombros – Acho que foi. Não sei. Papai sempre vai na vila.

Neto com ar curioso – Papai! O que é isso?

Glorinha se alegra – Meu pai. Você não tem pai?

Neto – Não! Tenho o meu avô.

Glorinha – Eu também tinha avô. Mamãe disse que ele morreu antes deu nascer. Minha avó também morreu. Ela era mãe do meu pai.

Neto – Minha mãe também morreu. – aponta uma direção – Ela está enterrada bem ali. Meu avô quem disse.

Glorinha vai ao local e observa a sepultura – Você também quer ver onde minha avó foi enterrada?

Neto – Meu avô não deixa.

Glorinha – Não é longe! – puxa ele pela mão – Vem comigo, vou mostrar. – Os dois correm em meio à floresta. Depois correm numa estrada, no meio do canavial. Seguem em meio a vegetação e chegam no local. Glorinha explica – Minha avó foi enterrada aqui. Papai disse que ela nunca mais vai voltar.

José Carlos, boquiaberto, se aproxima das crianças. Glorinha pergunta. – A vovó Margaret não vai mais voltar, não é mesmo papai?

José Carlos, fixo ao menino, sem acreditar na presença dele, se deixa cair de joelhos, agradecendo, em pensamento a visita tão desejada.

Glorinha aponta Neto. — A mãe dele também morreu. Ela foi morar no céu com a minha avó?

José Carlos, sorri forçado. — Sim. Com certeza estão juntas, olhando os dois.

Julia também se aproxima das crianças — Quem é este menino, Glorinha?

Glorinha — É o Caio, mamãe. Papai quem disse o nome dele.

Neto — Meu avô me chama de Neto.

Glorinha — Ele pode brincar comigo?

Júlia – Claro que não! Meninos e meninas não brincam juntos.

José Carlos – São duas crianças. Não tem problema brincarem juntos, aqui perto de nós.

Júlia – Duas crianças que vão crescer. Que estão crescendo. Que tipo de pai é você que vai permitir ver a filha crescer com um garoto que não sabemos quem é? Qual o nome da sua mãe garoto? Onde você mora?

José Carlos – Não importa quem é a mãe dele, Júlia. Eu o conheço. Ele não mora muito longe daqui.

Júlia segura Glorinha pelo braço – Melhor ir embora garoto. Não quero vê-lo perto da minha filha. Quanto a você, mocinha, lhe darei uma surra, mesmo contra a vontade de seu pai, caso saia sozinha, às escondidas. – Glorinha chora – Pode chorar à vontade. Melhor você chorar agora que eu depois. Quanto você garoto, o que espera para ir embora, e não volte aqui nunca mais.

 

Cena 5 – Neto corre em meio a vegetação. Encontra o avô, no caminho. Caio, muito bravo segura ele pelos braços – Onde você estava, Neto? Não proibi de sair de perto de mim? – Neto treme, assustado. Os dois vê José Carlos apontando numa direção, montado no cavalo. Caio pergunta ao menino – Você estava com ele? O que foi que ele lhe disse? O que conversaram?

Neto chora – Eu não sei, vô!

Caio puxa ele – Venha, comigo. Vamos, embora. E que isso não se repita, está me ouvindo, Neto?

Entram no rancho. Neto explica – Foi à menina, vô. Ela me levou onde está enterrada a…

Caio grita e o interrompe – Não quero ver você junto daquela gente, Neto. Quantas vezes preciso lhe dizer isso? E se aquela menina aparecer aqui de novo tomarei providências para que não se repita. Quanto a você, não se afaste de mim, nunca mais, você me entendeu?

Neto balança a cabeça que sim. Caio se afasta indo enrolar fumo – E não me faça perguntas que não vou responder.

Neto, aborrecido olha o chão. Caio grita – Venha me ajudar aqui. Tenho que entregar a encomenda amanhã cedo, na vila, e por sua causa atrasei o serviço. Então, trate de me ajudar bem agora. – Neto pega um punhado de folhas murchas e enrola um charuto. Caio balança a cabeça negando, se afasta indo ver os peixes assando na brasa.

 

Cena 6 – Uma vila antiga. Neto e o avô chegam de carroça de boi. Os dois vê José Carlos na entrada do empório. Neto para ao passar por ele, e o olha sério. Caio volta e puxa Neto. Mesmo assim, Neto continua observando José Carlos que fica parado no lugar, também com a atenção voltada para o menino. Caio fala com o comerciante que está próximo ao coronel – Caso o senhor não puder me atender agora, volto mais tarde, ou quem sabe outro dia. Essa cidade parece muito movimentada hoje.

José Carlos para o comerciante – Pode atendê-lo. Tenho tempo. Volto depois.

José Carlos deixa o empório. Neto segue ele com o olhar.

Comerciante fala com Caio – Desculpa, interferir, mas o senhor não acha que está indo longe demais com essa implicância toda com o coronel? Afinal de contas ele é…

Caio interrompe – O senhor quer conferir a mercadoria? Estou com pressa.

Comerciante, enquanto confere os pacotes de fumo – O senhor deveria pensar melhor. O coronel não quer mal ao senhor ou ao menino, que pode se tornar…

Caio se irrita – Por que não fica quieto no seu canto? Já esqueceu que, da outra vez que se meteu nisso, querendo ajudar seu amigo, ele teve a má sorte de sobreviver.

Comerciante franze o cenho – Bom, o coronel não é tão…

Caio perde a paciência – Não acredito que o senhor vai continuar insistindo nesse assunto. – pega Neto pela roupa – Arrume outro para fazer as suas encomendas, estou indo embora daqui com o meu neto.

Comerciante – Tudo bem, espere. Não falo mais nesse assunto. Não existe outro melhor nesta região, que faça esse tipo de serviço tão bem quanto o senhor.

Caio – Vou me informar a respeito disso, e caso eu descubra que está querendo me favorecer em nome daquele… – Breca as palavras, percebendo Neto atento na conversa. Sorri – Tudo bem, vou relevar em nome do meu neto. Assim tenho motivos para desfilar com ele pela cidade cada vez que eu trouxer uma encomenda sua. Quero que todos saibam que estou criando meu neto cada dia melhor, e pretendo transformar ele em um homem de verdade, dando inveja a qualquer tipo de pai que existe nesta região – aponta o comerciante – Dê um recado meu ao seu amigo coronel. Peça a ele para continuar no canto dele, como ele vinha fazendo até alguns dias atrás, se ele não quiser ter a má sorte de piorar a situação. Da próxima vez, ele não vai ter tanta sorte, como teve da primeira, porque vou fazer o serviço bem feito, e não vai ser com ele não. A morte é pouco para aquele infeliz.

Comerciante pega um pirulito e estende para Neto, atendo na conversa – Pelo jeito, garoto, você vai ver muita coisa acontecer entre seu avô e o seu…

Caio puxa bruscamente o menino – Me espere lá fora, Neto. – Pega o pirulito no lugar do menino – Desconta o doce no que lhe me deve. Faço questão de pagar. O que não quero é que o senhor continue com essa conversa na frente do menino. Deixe meu neto fora desse assunto. Continue o senhor longe também. Essa briga é minha e do coronel. Aquele maldito só está recebendo o que merece e o senhor sabe disso. – Comerciante encolhe as sobrancelhas, vai ao caixa, pega notas e as estende para Caio, que não pega. Caio fala com Neto ainda atento em tudo que acontece – Pega o que quiser, Neto. O vô paga. – vira para o comerciante – Depois que meu neto pegar o que quiser, o senhor me repassa o troco, caso sobrar algum. Se faltar o senhor cobra na próxima encomenda – volta para o menino ainda parado – Agora, vamos, Neto. Não temos tempo a perder, se não vamos chegar de madrugada em casa, e pirulito sei que você gosta. – vira para o comerciante – Pega um punhado de pirulito pra ele.

 

Cena 7 – Cenário. O dia amanhece. Neto, dormindo na rede dentro do rancho acorda assustado, grita pelo avô que está do lado de fora, cortando lenha com machado. Caio entra correndo – O que foi, Neto? Por que está gritando? Está sentindo alguma coisa? O que aconteceu?

Neto – Pensei que meu avô não estava mais aqui. Fiquei com medo. Pensei que tinha ido embora. Tinha me deixado sozinho aqui, para sempre.

Caio fica bravo – Precisava gritar daquele jeito por causa de uma bobagem? Eu pensei que estava morrendo. Ou, engolido por um bicho.

Neto – Fiquei com medo, vô. O senhor nunca vai morrer, não é?

Caio apreensivo anda de um lado a outro. – Ainda não parei para pensar nisso. Sabe de uma coisa. Venha, comigo. Vamos no rio buscar um pouco de água.

 

Cena 8 – Cenário. Beira de um rio. Uma arvore grande. Os dois sobe. Neto nada entende – Não vamos pegar água, vó?

Caio se acomoda em um galho – Aqui está bom. Agora pule.

Neto fica espantado – Pular daqui de cima, vô? Está muito alto, e o senhor sempre diz para não entrar na água logo cedo, que a água está fria, e posso ficar doente.

Caio – Não quero neto meu com medo de bobagem. Agora aperte o nariz, como já ensinei, e depois, vamos pular na água.

Neto – Meu avô vai pular comigo?

Caio – Claro que vou. Eu nunca vou te deixar sozinho. Vamos contar até três e depois pulamos na água, e agora repete comigo. Um…

Neto repete – UM…

Caio – Dois…

Neto – Dois… e juntos – Três…

Neto vai sozinho para o fundo da água. Se debate e volta para cima. Tosse engasgado. Vê o avô no galho – O senhor mentiu, vô. Não pulou comigo?

Caio – Isso é para você aprender nunca confiar em ninguém, nem mesmo em mim que sou seu avô. Como posso dizer que nunca vou lhe deixar sozinho, se não sei como será o dia do amanhã. Um homem nunca deve sentir medo, mesmo vivendo sozinho. E você está crescendo, Neto. Cada dia vai crescer mais e quero fazer de você um homem forte, o bastante para enfrentar tudo o que vier pela sua frente. Assim, não vai sentir medo de ficar sozinho, quando eu partir dessa vida para outra. Todo mundo morre. Ninguém fica para sempre. Um dia eu vou morrer. Você também vai morrer. Assim é a vida. – Neto nada responde, olhando seriamente o avô, que rindo pergunta – E aí, a água está muito fria?

Neto pensa e depois responde – Não muito! Está quente.

Caio – Então, agora eu pulo. Lá vou eu… – e mergulha. Neto dá gargalhadas. Caio fica bravo – Seu danado, você me enganou. A água está um gelo só.

Neto – Isso é para o senhor nunca confiar em ninguém, nem mesmo em mim que sou seu neto.

Caio rindo concorda – Seu pilantra, você é muito esperto, e aprende tudo rapidinho. – jogam água um no outro brincando.

 

Cena 9 – Cenário. Os dois voltam para o rancho e encontram Glorinha. Caio pega ela pelo braço – Venha, comigo, menina. Vamos ter uma conversa muito séria com o seu pai. Está é a última vez que você aparece aqui.

Neto – Deixe ela aqui, vô?

Caio grita – Você fica aqui. Não quero que venha comigo. A conversa vai ser minha com o pai desta menina.

Neto fica parado. Depois segue e de longe vê o avô e José Carlos se encontrando no caminho. Glorinha corre ao encontro do pai, abraça ele pela cintura. Decidido Neto volta o caminho, entra no rancho, senta no cantinho predileto no chão, perto do fogão de lenha, cavado na terra. Caio retorna, vendo Neto chorar – Não acredito que você ficou aí, chorando?

Neto, em prantos – Glorinha vai voltar, não vai?

Caio funga, e responde – Não, Neto. Só se o pai dela não tiver juízo depois do que falei a ele.

Neto – O que meu avô falou com ele?

Caio – Para manter a filha dele longe de você. Caso contrário, vou enterrar ela no mesmo buraco onde enterrei Helena. Porque vai acontecer com ela à mesma coisa que aconteceu com a sua mãe.

Neto – O que aconteceu com a minha mãe?

Caio pensa e fala calmo. – Apesar de você ser tão menino é muito esperto pela sua idade. Quando crescer, for adulto vai entender o que acontece. Assim espero. – pega folhas murchas e começa enrolar um charuto – Agora chega de perguntas, não vou responder mais nada, e pode ficar aí chorando o tempo que quiser, não preciso da sua ajuda dessa vez, a encomenda que tenho é pequena, sem pressa de entregar. – Neto seca o rosto com mãos e vai ajudar o avô. Caio se alegra, mexe nos cabelos caracolados do neto, no alto da cabeça – Isso mesmo, meu Neto. Você é forte e de opinião como era a sua mãe. Você não imagina como fico feliz com isso. Ainda vou sentir muito orgulho de você, como sempre tive orgulho da sua mãe.

Neto – Por que minha mãe morreu?

Caio respira fundo – Um dia você vai saber. Bom, ela morreu porque tinha que morrer. Agora chega de perguntas, e vai buscar lenha, o fogo está se apagando. Isso é algo importante que precisa aprender. Nunca deixe o fogo se apagar de vez. Se isso acontecer vai ter muito trabalho. Vou te ensinar depois como acender. Vai buscar lenha lá fora.

Neto sai. Caio balança a cabeça negando. Neto volta com a lenha. Caio arruma o fogo. Pega duas madeiras e ensina Neto acender, esfregando uma madeira na outra até sair brasa.

 

Cena 10 – Cenário. Neto, do lado de fora do rancho brinca com um macaquinho. Vê Glorinha chegar e corre ao encontro dela. – Meu avô falou que você nunca mais ia aparecer aqui.

Glorinha, entristecida – Eu vim me despedir de você. Mamãe quem deixou. Vamos embora daqui. Mamãe disse que vamos morar na capital. Papai não quer mais morar aqui. Ela disse que lá vou ter uma porção de amiguinhas.

Neto também entristece – Então, você nunca mais vai voltar aqui, mesmo?

Glorinha – Mamãe disse que posso voltar quando eu crescer.

Neto – Vai demorar você crescer?

Glorinha – Mamãe disse que não.

Neto – Você volta aqui quando crescer?

Glorinha balança a cabeça – Volto!

Neto – Você promete?

Glorinha alegre – Prometo!

Neto também se alegra – Vou ficar aqui esperando você.

Os dois vê Caio se aproximar de mansinho. Glorinha corre – Tiau, Neto, um dia eu volto.

Caio coloca a mão no ombro do menino, que fixa os olhos no avô – Parece que o pai dela tem mesmo juízo. Estou feliz em saber que vão embora daqui. – Lágrimas molha o rosto de Neto, o avô fica bravo – O que é isso, meu neto. Vai chorar de novo por causa dessa menina? E depois, homem não chora. – Neto corre, seguindo o caminho que fez Glorinha. Caio grita – Volte, aqui, Neto, aonde vai?

 

Cena 11 – Cenário – Margem do rio. Neto para próximo a água, ainda chora muito. Com raiva pega uma pedra e joga com força na água. Caio chega e o observa de longe. Ameaça ir embora, muda de ideia e se aproxima, senta numa rocha, pega uma pequena pedra e também joga na água. Depois fala – Você é um menino muito especial, Neto. E entendo o seu sofrimento. Já aconteceu comigo, o que está acontecendo com você, e nunca contei antes a ninguém.

Enquanto ele conta sua história, aparece um jardim e uma menina de 12 anos, colhendo rosas. Um garoto de longe observa ela.

Caio – Eu era mais velho que você, quando também conheci uma menina. O nome dela era Ester. Ela morava perto da casa, onde eu morava com os meus pais. Eu ainda posso me lembrar, com detalhes, toda à beleza que Ester tinha, e só podia ver ela de longe. Ficava imaginando, um dia ficar junto dela para sempre, mas aconteceu o inesperado. Meus pais tiveram que se mudar para outra cidade, bem longe dali. Passei a desejar ficar adulto logo, assim poderia voltar ver ela novamente. Quando isso aconteceu, voltei, e Ester já estava casada com outro homem, e nunca soube do meu amor. Por muitos anos, vivi desiludido. Falava comigo mesmo que jamais iria gostar de outra, mas não foi bem assim. Acabei conhecendo outra moça que fez parte da minha vida, e achei que seria feliz de verdade com ela, para sempre. Principalmente depois que ela me deu filhos. Primeiro a sua mãe, depois um menino. Um menino que imagino ser igualzinho a você, se ele não tivesse ido morar com a mãe no Céu. E hoje estamos aqui, só nós dois. Eu e você, sozinhos, sem mais ninguém em nossas vidas. Não desejei esta vida a mim, Neto. Nem a mim e muitos menos a você, e não quero que você e aquela menina sofram por nada de errado neste mundo.

Neto, em prantos – Então, por que Glorinha não pode ficar aqui?

Caio – Quando você crescer, vai descobrir que a vida não é como sonhamos ou desejamos. Sempre há espinhos pelos caminhos, espinhos que entram na carne, machucando, sangrando sem piedade, até que as feridas cicatrizam, mas sempre vamos lembrar como doeu, porque deixaram marcas pelo corpo, que são as lembranças que nunca se apagam da memória. Mas também acontece coisas insignificantes em nossa vida, das quais, no outro dia, nem lembramos mais. Isso também aconteceu comigo. Outras mulheres também passaram pela minha vida, muitas, eu nem lembro o nome. Um dia, você vai acordar, e não vai mais se lembrar dessa menina, e mesmo que se lembre, ela será para você, como aquela que eu ainda lembro, mas sei que nunca vai voltar para mim, como esta menina nunca vai voltar para junto de você e agora chega de perguntas, não vou responder mais nada. Fique aqui se quiser, estou voltando para casa. Não espere escurecer para ir embora. Vou preparar uma sopa de aipim, do jeito que você gosta, com carne de tatu. Estou esperando em casa. – e sai. Neto ainda chora, senta na rocha, pega outra pedra e joga na água.

 

Cena 12 – Neto entra no rancho. Para na entrada, olhando o avô. Caio sentado ao lado da mesa come. – Pensei que fosse ficar lá mais tempo. Vem comer um pouco de sopa, está boa. E estou aqui pensando, Neto. O que você acha de voltar no rio depois para pescar? É lua cheia, bom para pescaria. Está bem claro lá fora, não está? – Neto balança a cabeça que sim, se aproxima do avô, ainda olhando ele seriamente. Caio fica bravo. – Não me olhe assim? Não me faça se sentir culpado pelo que estou fazendo, eu não tenho culpa de nada. Só estou fazendo o que é justo. O que é justiça.

Neto pega sopa no caldeirão, responde, ainda carrancudo – Não estou perguntando nada. Nem vou perguntar.

Caio ri – Está certo! Vamos comer em paz, e depois vamos pescar. Não. Vamos dormir. Mudei de ideia. Amanhã você pesca sozinho durante o dia, já sabe pescar. Não tem mais problema você andar sozinho por aí, com aquele homem longe daqui. Quero que você aprenda fazer tudo sozinho de agora para frente, e uma delas é cuidar bem de você mesmo, como eu aprendi a cuidar de mim e de você. Assim, vai aprender cuidar da sua família, como um homem deve fazer. Um dia você vai ter a sua família. Vai ter uma esposa, que vai ser mãe dos seus filhos. Que vão ser meus bisnetos. – sorri – Veja como é a vida, Neto. Ela nunca para e sempre será assim. Um dia você vai entender o que estou falando. Vai descobrir o sentido de ter uma família. Ter filhos. Filhos que vão ser a sua continuidade como foi a sua mãe para mim, e seus filhos e netos vão ser o que você é hoje para mim.

Neto – A sopa está mesmo boa, vô. Posso pegar um pouco mais?

Caio – Primeiro come o que pegou, depois repete se couber na barriga.

Neto come rápido. Repeti, enquanto o avô o observa. Quando vai repetir, Caio brinca com ele – Hei, deixe um pouco pra mim, eu também quero repetir.

 

Cena 13 – Cenário. Margem do rio, em meio a floresta. Neto, sentado numa rocha, pesca. Vê José Carlos chegar devagarzinho. José Carlos se aproxima e senta ao lado dele. – Está sozinho, aqui?

Neto – Meu avô foi na vila levar uma encomenda de tabaco.

Carlos, muito surpreso – Seu avô o deixou sozinho?!

Neto – Eu que não quis ir com ele. Quis ficar aqui pescando.

Carlos – A vila é muito longe daqui, mesmo que seu avô tenha saído de madrugada, vai chegar tarde da noite. Não tem medo de ficar sozinho?

Neto – Meu avô vive falando que homem não tem que sentir medo de nada na vida, nem mesmo de ficar sozinho, e eu estou crescendo. Logo vou ser homem grande e não quero ter medo de nada.

Carlos – Seu avô está certo. Não tiro a razão dele. O medo é a pior coisa que existe dentro de um homem. É um mal que mata aos poucos, sem piedade. – Sorri para esconder a tristeza – Ainda estou surpreso de seu avô deixá-lo sozinho, ainda mais vir pescar aqui, sem a companhia dele. Eu sempre vejo vocês dois aqui, pescando. Digo até que fico com inveja. Eu sempre desejei ter um filho e fazer com ele o que meu pai não pode fazer comigo.

Neto – O que um pai faz?

Carlos pega a vara de pescar e atira o anzol na água. – Acho que é assim que um pai faz. Passa as horas atoa, tentando pegar um peixe na beira de um rio, com o seu filho.

Neto – Eu não tenho pai. Mas o meu avô pesca comigo. – J. Carlos engole forte a saliva, devolve a vara. Neto se alegra – Ela também voltou, não voltou? Meu avô falou que não tinha mais perigo eu pescar sozinho, que o senhor tinha ido embora. Que foi morar em outra cidade, bem longe daqui, e nunca mais ia voltar. Mas se o senhor está aqui, Glorinha também voltou, não voltou?

Carlos – Não, ela não voltou. Glorinha ficou na capital, em um colégio. Vou visitá-la no final do ano. Ela deve estar bem.

Neto entristece – Eu queria tanto que Glorinha estivesse aqui. Traz ela de volta?

Carlos engole a saliva e a voz quase não sai. – Não posso fazer isso! É melhor Glorinha ficar onde está. Vai ser melhor assim!

Neto chora – É por causa do meu avô?

Carlos – Não! Não é por causa do seu avô! É pelos erros que eu cometi e não tem mais volta. E, entendo perfeitamente a reação do seu avô. Não o condeno faz tempo. A dor que ele carrega no peito é pior que a minha. Eu posso ver Glorinha quando eu quiser. Enquanto seu avô tem que se contentar com o que restou da filha dele.

Neto – Que era a minha mãe, é isso que eu entendi?

Carlos seca, com as pontas dos dedos, a face do menino – Sim, sua mãe Helena. E você se parece muito com ela.

Neto seca o rosto com as mãos e pede com satisfação – O senhor vai trazer Glorinha de volta, não vai?

Carlos levanta, anda de um lado para o outro, preocupado – Só pode ser a sua mãe que está fazendo isso comigo. Helena deve estar usando você e Glorinha para me punirem. Mesmo do outro lado ela não me perdoou, talvez nunca me perdoe, mesmo que eu implore perdão de joelhos.

Neto – Não entendi nada do que falou.

Carlos – Você é muito garoto ainda, e mesmo sendo tão esperto pela sua idade, não vai entender que um homem, muitas vezes, comete loucuras na vida. Coisas tão erradas que não tem remédio que cure.

Neto – Meu avô sempre pede para não ficar fazendo perguntas, então não vou perguntar mais nada. – Tira a vara de pescar da água – Melhor eu ir embora, meu avô vai brigar de novo se ver a gente conversando.

Carlos – Seu avô não precisa saber que conversamos. E depois, encontrei você aqui por acaso. Saí para dar uma volta a cavalo e acabei vindo a este lugar, onde tudo começou errado na minha vida. – Vira para o menino. – Gostei de falar a sós com você, e caso, um dia, precisar de um amigo, sabe onde me encontrar. – Monta no cavalo e vai embora. Neto o segue com o olhar, e depois volta à pescaria.

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