Após conferir a refeição que seria servida no café da manhã, Francisca prepara uma bandeja e depois sobe a escada. No quarto, encontra a cama vazia. Abre a cortina e pela janela vê Eduardo, ao lado da lápide de Glorinha.

Atento à sepultura, ele percebe ela se aproximar: — Os hóspedes já se levantaram?

Francisca — Ainda estão descansando. – se aproxima melhor — Devia ter contado toda a verdade à nossa neta?

Eduardo — De que está falando?

Francisca — Se for de fato o que pensamos, ser Glorinha reencarnada e o marido Neto, alguém que conhecemos, seria Zequinha. Você sabe de quem estou falando.

Eduardo — Não quero nem pensar no que está querendo me dizer, Francisca.

Francisca — Você começou essa história, não foi?

Eduardo — Errei. Meu pai estava certo. Essa é a verdade.

Francisca — Tem certeza que quer pensar assim?

Eduardo — Não. Nunca vou acreditar. Meus lábios podem repetir mil vezes, e o meu coração jamais irá concordar.

Francisca — Um homem que morreu sem perdoar ao filho a escolha que fez e sem aceitar a neta, mesmo ela herdando a cor branca do pai.

Eduardo — Porque estamos falando nisso?

Francisca — Talvez, por me sentir cansada de ver você sofrer todos esses anos, com tudo o que aconteceu. Se colocasse para fora a mágoa que tem no coração seria mais fácil superar a sua dor.

Eduardo — Nunca parei para pensar que… Não, eu não acredito, Francisca, que nosso neto seja meu pai reencarnado, recebendo, na pele, o que ele renegou. Se for, peço a Deus que tenha misericórdia de sua alma e encontre a paz no corpo em que está. Que o pai o aceite e o ame como ele é, e não como desejava que fosse. Essa foi uma diferença que também existia entre mim e meu pai. Eu nunca consegui ser o filho que ele queria. Ele não foi um pai perfeito de que eu pudesse me orgulhar. Você é testemunha disso, e eu já perdoei, faz muito tempo, tudo que ele fez contra mim. Mas com a minha filha. – mira Francisca nos olhos – Com a nossa filha, ainda dói muito dentro do meu peito, pensar que todos os sofrimentos dela são consequências do meu pai, por não entender o que é amar de verdade. Quando perdi Glorinha, pensei que a minha vida não teria mais sentido. Me tornei em um homem frio e solitário. Clara surgiu na minha vida, no momento, em que eu mais precisava de forças para continuar a viver. Com ela reaprendi a amar e meu pai não entendeu meus sentimentos. Foi através de Clara que descobri que meu pai não tinha nenhum sentimento de amor por mim, pela minha mãe, por qualquer pessoa que vivia ao seu lado. Um homem que não amava a si mesmo.
Francisca — Ontem à noite, depois que você se recolheu, fiquei um bom tempo conversando com a nossa neta. Gloria Maria me disse que Zequinha não aceita ser como ele é. Se senti inferior. Isso é não ter amor a si próprio, sem dizer que o pai não tem nenhum sentimento de amor por ele.

Eduardo — Francisca, você está querendo me convencer de que… – faz um gesto com a mão. — Vamos mudar de assunto, por favor. Relatar os sofrimento do meu neto é me fazer voltar o tempo. Nunca desejei mal ao meu pai. Deus é testemunha disso.

Francisca o abraça e sente ternura. – Perdoe-me. Queria tanto, um dia, consegui fazê-lo feliz de verdade.

Eduardo — Sabe qual é o meu desejo também?

Francisca — Não faço a menor ideia!

Eduardo — Um dia retribuir todo o amor, carinho, paciência e tudo o mais que você dedicou a mim, como mãe de nossas filhas, e por fazer parte de nossa caminhada.

Francisca — Essa foi a missão que acredito ter recebido e que vou cumprir até o ultimo dia.

Eduardo — Posso lhe fazer um pedido?

Francisca — Sabe que faço tudo o que me pede. Mas, antes, também quero lhe fazer um: não lamente o que aconteceu e ainda poderá acontecer com nossa filha Clara e nosso neto. Sinto que algo de ruim irá acontecer, quando nossa neta voltar e dizer aos pais, a verdade. Então, vamos acreditar que Clara e Zequinha nasceram para viver o que vivem. É o destino deles. Agora me diz o que quer. Prometo cumprir, se estiver ao meu alcance.
Eduardo — Quero que você vá para o Rio de Janeiro com a nossa neta, e você mesmo conte para Clara toda a verdade. Acredito que será melhor.

Francisca balança a cabeça que sim. Depois do almoço, ela viaja com

Caio e Glória Maria. Começa a escurecer quando chegam no centro da cidade de São Paulo. Vão direto para a casa de Noemi. Ela sempre desejava conhecer a sobrinha. Tinham a mesma idade, e nunca haviam tido contato antes. Noemi acompanha a mãe. Após o jantar partiram. Afonso, esposo de Noemi, também segue junto. No outro dia bem cedo, em Santos, embarcam no navio para o Rio de Janeiro.

Zequinha, sentado próximo aos pais à mesa, jantam em silêncio. Ao pegar a caneca, deixa cair um pouco de suco no prato.

Robson — Além de negro, vai virar porco e comer lavagem?

Zequinha — Desculpe, pai. Derrubei sem querer.

Robson, agressivo, pega-o pelo braço: — Veja bem a minha cor, moleque, para eu ser seu pai.

O menino fica desapontado e entristecido. Robson grita: — Pega essa lavagem e vá comer longe daqui.

Clara impedi o filho sair: — Derrubou o suco sem querer, filho, e pediu desculpas. Fique onde está. Coloco outro prato.

Robson, com ignorância, a impede: — Deixe o moleque comer o que está no prato. A partir de hoje não quero ele sentado na mesma mesa que eu — pega a vasilha e a estende ao garoto. — Agora desapareça da minha frente.

O menino se move devagar, atento à mãe, que ainda tinha o braço preso. — Me obedeça, moleque. Saía daqui. Não suporto olhar sua cara.

Clara, suspira, sem aceitar a humilhação que a criança recebe. — Se não atura a presença do menino, deixe-me ir com ele, morar na fazenda do meu pai.

Robson — Por acaso é lá que vive o maldito negro com quem você me traiu?

Clara, pega os pratos: — Vamos comer em outro lugar, filho. — Vira para o marido: — Quanto a você, pense o que quiser. Estou farta de tudo.

Robson, segura-a com força: — Não me desobedeça, Clara. Sou seu marido e exijo respeito. Ou será que pensa que vou lhe dar o prazer de voltar para o maldito negro com quem adulterou, para viver às maravilhas, como vive seu pai com a escrava dele?

Clara — Francisca não é mais escrava. É livre como qualquer mulher branca.

Robson — Porque uma, como você, deu liberdade a esse bando de negros que agora infecta toda a cidade.

Clara — Homens, iguais a você, são incapazes de aceitar, com dignidade, o que eles receberam por direito — e geme de dor ao receber violenta bofetada.

Zequinha a defende: — Não, pai. Não faça isso com minha mãe. Não bata nela por minha causa.
Enfurecido o homem ainda segura a mulher, sentindo ódio e desprezo: — Além de tudo, ainda sou obrigado aceitar um deles dentro da minha própria casa me chamando de pai. — Pega Zequinha pela camisa: — Esta será a última vez que ouço me chamar assim. — Volta para Clara, que, em lágrimas, seca o sangue que lhe escorre pelo canto da boca: — Estou farto também. Diga onde encontro o maldito e qual o nome. Prometo acabar só com ele. Depois você pode ir viver onde quiser com esse negrinho. Caso contrário, ele vai morrer no lugar do pai, ainda hoje. — Puxa a criança, sai em direção à porta: — Vamos acabar com isso de uma vez.

Clara corre atrás, e puxa o menino, quando saem no jardim: — Pare com isso. Pelo amor de Deus, pare com isso.

Robson, segura as mãos dela e fala com Zequinha: — Pegue a corda e amarre sua mãe. Assim, vai impedir que eu faça com ela o que vou fazer com você.

Zequinha, em prantos — Não machuque minha mãe, pai.

Clara é jogada para trás. Cai no chão, e o menino agarrado outra vez. — Não me chame assim, negrinho fedorento. Quantas vezes preciso lhe dizer isso. Mas juro, por mim mesmo, que, a partir de hoje, não mais vou ouvir essa palavra na sua boca. — Pega a corda no chão e a estende a ele: — Agora amarre sua mãe. Não quero ser obrigado a matá-la antes de me dizer quem colocou você nas entranhas dela. Se ela disser quem é, mato apenas o safado. Do contrário, você vai apanhar de chicote até a morte.

Clara — Pare com isso. Vai matar seu próprio filho.

Robson agarra-a pelos cabelos: — O destino desse negrinho está em suas mãos. Você vai decidir se ele vai morrer ou não. — Vira para o menino: — O que está esperando para fazer o que mandei? Não quero sua mãe atrapalhando.
O menino pega a corda, enquanto Robson leva Clara ao tronco de uma árvore. Fora de si, dominado pela ira, ainda falava à mulher: — Quero ver sua coragem e qual vida vai poupar: a de seu filho ou a do maldito com quem você me traiu por vingança, por eu não aceitar, dentro de nossa casa, uma negra, nos braços da qual seu pai teve a coragem de colocar você, depois de matar a sua mãe. Quem garante que não foi ele quem a matou, de propósito, para substituí-la por aquela preta que você estimou como mãe? – e grita com o menino parado um pouco distante: — Agora é a sua vez, negrinho. Amarre-a muito bem.

Clara em soluço: — Perdão, filho?

Zequinha — A senhora é quem deve me perdoar por eu não ser o filho que meu pai queria.

Robson se irrita. Toma a corda dele: — Você não passa de um palerma. Não serve para nada. Nem para fazer o que mando.
Termina de amarrar Clara e leva o menino para outro tronco: — Quero ver quantas chicotadas você vai suportar até sua mãe falar a verdade. Que ela diga logo. Será melhor para todos.

Clara fecha os olhos para não ver o filho ser amarrado.

Robson agarra ela pelos cabelos: — Abra os olhos. Quero que veja cada chibatada que ele vai receber no lugar do pai.

Clara — Pare com isso! Pelo amor de Deus, mate a mim. Deixe-o viver em paz.

Robson — Prefere morrer no lugar dele? É isso? No lugar do maldito?

Clara grita — Estou falando do nosso filho. Nunca traí você. Acredite em mim, pelo amor de Deus. Ele é seu filho.
Robson — Vamos ver até quando vai continuar mentindo. — E rasga a camisa do menino nas costas e arma o chicote. Glória chega e corre, protegendo o irmão. Caio segura o braço dele, evitando Glória levar o golpe. Robson, Surpreso — O que estão fazendo aqui?

Caio — Impedindo o senhor de cometer loucuras.

Glória, em prantos, sussurra aos ouvidos de Zequinha, ainda colada ao corpo dele. — Acabou, meu irmão. Papai terá de aceitá-lo, como filho. Eu trouxe a verdade comigo.

Zequinha, sem acreditar, chora — Glória, é você mesma que está aqui?

Glória — Lembra que prometi encontrar a verdade? Que um dia ela iria aparecer? Você é, sim, filho do nosso pai.

Robson franze o cenho, vendo Francisca soltar Clara das cordas e Noemi ao lado de Afonso, e se dirige ao genro, ainda segurando ele — O que é isso? Você se casou com minha filha para quê? Para trazer esse bando de negras para dentro da minha casa?

Glória — Foi o vovô Eduardo, papai. Quem pediu que elas viessem.

Robson nervoso — Quem o seu avô pensa que é?

Caio — Melhor se acalmar e ouvir. Depois poderá dizer o que pensa.

Glória, passa o braço em torno do pescoço do irmão e apresenta a tia: — Está é Noemi, Zequinha? Ela é nossa tia, irmã da nossa mãe. Ela é filha do mesmo pai e da mesma mãe, assim como eu e você.

Clara — Filha, o que está dizendo?

Glória — Isso que a senhora ouviu, mamãe. O vovô Eduardo mentiu quando… — vira para Francisca, ao lado de Clara: — Vovó, diz a verdade a ela, como pediu o meu avô.
Robson, enruga a testa quando Clara se dirigi a Francisca: — Minha mãe? Você é minha mãe, Francisca? Era essa a mentira de meu pai? São corretas essas palavras da minha filha?

Francisca também se comove: — Sim — leva a mão à barriga. — Você saiu daqui. — Vai a ela e a acaricia no rosto: — Você é minha filha. Seu pai mentiu quando lhe deu o nome da esposa morta. Ele desejava que você fosse livre para ser feliz. Não queria ver você tratada como escrava.
Depois de tudo explicado, Clara nada responde. Tensa e olhos parados se afasta da mãe, enquanto pensa. Todos, em silêncio, espera a reação dela que observa um por um. O último o esposo, e se dirige a ele, em voz firme: — Cumpra a sua palavra! Quero que tire sua vida depois de tirar a minha e a de seu filho. Você jurou, muitas vezes, que, na hora em que encontrasse o pai dele, o mataria. – e pergunta ao menino: — Você está preparado para a morte, filho? Por que eu estou.

Glória, em pânico — Mamãe, pare com isso. Acabou o inferno que estávamos vivendo. Meu pai vai aceitar Zequinha como filho. Não tem como renegá-lo agora, conhecendo a realidade. Diga que estou certa, papai.

Robson encara os olhos cor mel da filha, que espera a resposta; depois olha Caio, que ainda o segura. Caio o deixa livre. Robson observa Francisca e depois Afonso com o braço ao redor do corpo da esposa. Apesar do momento que presenciavam, o casal lhe mostra semblante esperança, com o enorme ventre da mulher, grávida de quase nove meses. Por, fim, olha o filho, cabisbaixo. Zequinha tinha o rosto banhado em lágrimas. Bruscamente é puxado: — Vamos ter uma conversa só nós dois. De homem para homens.

Glória ameaça acompanhá-los.

Clara a impedi: — Permita que seu pai faça o que achar correto.

Glória chora. Caio puxa-a para si, a fim de confortá-la: — Não acredito que seu pai faça o pior. Vai tentar se entender com o filho. Apenas conversar.

Clara: — Obrigada, filha, por ir buscar a verdade. – Em prantos ela e Francisca se abraçam. — Minha mãe! Você é minha mãe, Francisca. Porque nunca me disse isso?

Do outro lado do jardim, Robson não é o mesmo de antes. Estava manso, com a fisionomia apagada. — Está preparado para morrer? Se estiver quero que diga sim, bem alto. Não quero me sentir culpado pela sua morte. Agora, responda com toda a sinceridade: É capaz de aceitar a morte comigo? — Zequinha chora. — Eu lhe fiz uma pergunta. Quero a resposta? — Zequinha engole a saliva. Robson pega-o pelos braços: — Olhe bem nos meus olhos. Será a última vez que vou lhe perguntar: Você está preparado para aceitar a morte comigo? Preciso ter certeza. Sim ou não? — Zequinha balança a cabeça que sim. — Responda com palavras. Quero ouvir a sua voz.

Zequinha sussurra — Sim, estou.

Robson se afasta, pega madeira em um canto do jardim e, sem pressa, faz um círculo ao redor do garoto. Na lateral da casa, apanha uma lata de querosene e despeja na madeira. Todo o tempo se mantem atento ao filho que observa cada movimento do pai.

Zequinha relembra os gestos e as palavras de Clara quando pega uma faca de ponta fina, em cima da mesa, e fura a ponta do dedo, secando o sangue em um pano branco. Depois estende a faca e o pano para a filha – Faça você agora, Glória, o mesmo que fiz? – Glória obedece. Clara pega a faca o pano e os estende ao filho – Agora é a sua vez. – Zequinha hesita um instante, cria coragem, pega a faca e também fura a ponta do dedo. Clara dobra o tecido, depois estende sobre a mesa. Pede ao filho – Agora mostre. Qual mancha de sangue é a sua, a minha e de sua irmã?
Zequinha, sem ver diferença se alegra – Você não precisa buscar a verdade, como me prometeu, Glória. Sou mesmo igualzinho a você, a nossa mãe, e também ao nosso pai. Nada me importa agora, e não vou ter medo dele. Nunca mais. Vou ser o melhor filho. E um dia, ele terá muito orgulho de mim. – Mexe os ombros – Pelo menos vou acreditar e esperar. Nem que eu morra tentando.

Robson ainda atento ao filho, vai à fogueira a um canto do jardim. Enquanto espera a lenha acender, relembra as últimas palavras de Clara: — Cumpra a sua palavra! Quero que tire sua vida depois de tirar a minha e a de seu filho. Você jurou, muitas vezes, que, na hora em que encontrasse o pai dele, o mataria. – e pergunta ao menino: — Você está preparado para a morte, filho? Por que eu estou.

Com tristeza, olhos brilhantes pelas lágrimas, Robson fala com o filho, ao se aproximar dele. Zequinha o encara com firmeza. — Eu também estou preparado para a morte e não sou digno de levar a sua mãe conosco. Muito menos me jogar aos pés dela e esperar que me perdoe. Então, vamos só nós dois. Muitas vezes, eu jurei, em nome de Deus, matar seu pai junto com você, quando o encontrasse, e vou cumprir a minha palavra, já que você parece aceitar também o que determinei a nos dois. Mas, antes disso, preciso do seu perdão. Se estiver mesmo preparado para morrer comigo, diga que me perdoa. Fale bem alto, eu preciso ouvir. Você me perdoa?

Zequinha olha o chão, e a voz sai rouca: — Perdoo.

Robson — Não ouvi. Fale mais alto.

Zequinha chora — Eu o perdoo.

Robson se irrita: — Se vai morrer comigo, levante a cabeça. Olhe nos meus olhos e fale bem alto que me perdoa. Ainda não ouvi direito.

Zequinha — Eu te perdoo, pai. Eu te perdoo, por ser meu pai.

Robson se alegra. — Agora eu ouvi. ─ Abre os braços. — Agora me abraça. Eu quero um abraço seu.

Sorrindo, o menino imita seu gesto. Robson o aperta com afeto, olhos encharcados: — Perdoe-me, filho, por eu nunca tê-lo aceitado por ser diferente de mim.

Zequinha — Somos iguais por dentro, pai. O meu sangue é o seu.

Robson — Sim. Somos iguais. O mesmo sangue que corre em mim, faz bater o seu coração. Agora vamos morrer em paz. Sem mágoas um do outro. Este fogo irá nos tornar iguais por dentro e por fora. Vamos juntos para onde nossa alma for levada. Este fogo irá nos unir para sempre. Através dele vamos nos tornar um só, sem diferenças! — Solta o pedaço de madeira, aceso, sobre a querosene, e o aperta ente seus braços. ¬— Meu filho! Perdoe-me.

Do outro lado, Clara ainda chora, no aconchego de Francisca: — Eu confesso que no fundo do meu coração, sempre desejei que a senhora fosse minha verdadeira mãe, ainda mais depois que meu filho nasceu. Eu sabia que tudo o que eu conhecia sobre mim estava errado.

Francisca — Sei disso, filha. Você não imagina quanto eu e seu pai sofremos todos esses anos por isso.

Clara — Meu pai… Onde está ele? Quero tanto vê-lo. Abraça-lo.
Francisca não tem tempo de responder, vendo o fogo surgir do outro lado. Correm para lá. Caio detém Glória, impedindo que se aproxime. Ela grita pelo pai, em desespero. Francisca e Noemi seguram Clara, também aos gritos. Todos caem de joelhos ao chão, arrasados, enquanto os corpos são devorados pelas chamas.

O dia amanhece, eles ainda estão sentados na grama, olhando a fumaça sair das cinzas.

Adalberto chega com Ester e coloca a mão no ombro do filho: — O que aconteceu? Vim assim que soube. — Caio, inconformado o abraça. — Vamos sair daqui?
Glória vai com eles. Os demais também deixam o local.

Em casa, Caio observa Glória estirada na cama, olhos distantes, ainda em êxtase. Na sala os pais o aguardam. Ele aparece. Adalberto pede: — Vá descansar. Está abatido. Precisava dormir um pouco também. Eu volto mais tarde para saber como estão.
Caio concorda em gesto com a cabeça. Abre a porta para os pais.

Dalva chega. — Acabei de saber da tragédia. Glória, como está?

Caio evita olhar diretamente a ela, enquanto explica: ─ Ela está descansando.

Dalva — E você, como está?

Caio ergue a cabeça. Não consegue evitar os olhos dela que o encara.

Adalberto e Ester percebem a reação do casal. O rapaz se afasta. — Estou bem, obrigado.

Adalberto ameaça dizer algo, muda de ideia. Chama Ester e vão embora. Caio volta olhar Dalva que fica parada. Ele gagueja: — Por que não… não volta mais tarde? Não fica bem você sozinha comigo.

Dalva — As únicas pessoas que eu poderia envergonhar seriam meus pais, se fossem vivos. Eu seria capaz de fazer o impossível para que eles não sentissem vergonha da filha. Quanto aos demais, não importa o que pensam. Nem mesmo a sua mulher, se nos vir a sós, conversando. Não devo nada a ela — e o abraça pelo pescoço, sussurrando. — Quero que você saiba que estarei aqui, para compartilhar o momento de dor, o ajudando no que for preciso. Eu amo você, com toda a minha alma e coração — e oferece os lábios, desejando ser beijada. Caio, com gentileza, afasta ela para trás.

Dalva, envergonhada. — Desculpa, eu não devia ter feito que fiz. — ameaça ir embora. Volta olhar ele, cabisbaixo: — Eu não queria te amar tanto.

Caio impede-a de sair. Puxa ela para si. Entreolham com idêntico amor e desejo, e se sentem transportados, seguindo por uma dimensão, unidos às estrelas, quando os corpos se juntam, e os lábios teriam se unido se não fosse um barulho, trazendo-os de volta à realidade.

Dalva — Volto mais tarde para saber de Glória.

Glória chega a tempo de ver Dalva sair, quase correndo. Caio amarelo, encara a esposa. Glória finge não perceber: — Dalva quem estava aqui?

Caio — Sim — disfarça. — Veio saber de você. Falei que estava descansando. Disse que volta mais tarde. E porque se levantou? Deveria estar descansando.

Glória — Vim tomar um pouco d’água.

Caio — Eu busco. — sai apressado. Na cozinha, serve da moringa de barro. Bebe, enquanto procura relaxar a tensão. Pega mais e volta à sala.

Glória nota que ele ainda tremia ao lhe estender a caneca. — Deveria descansar também. Vamos deitar comigo?
No quarto, ele conchega-a ao peito, e procuram dormir.

No outro dia, no vestiário, Caio encontra um bilhete. Lê e nada entende. Na sala do pai, ele lhe estende o bilhete: — Que brincadeira é essa do meu primo? Onde o Carlos está?

Adalberto lê o escrito. Senta, antes de responder: — Esse bilhete explica o motivo da morte dele. Seu primo não está mais entre nós.

Caio — O que está dizendo?

Adalberto — Nada comentei antes por causa do que aconteceu com a família da sua mulher. Eu ia esperar você se recuperar um pouco, do trauma que viveu para, só então, falar da morte do seu primo.

Caio, em transe, encosta na parede. Sem conseguir ficar de pé, senta no assoalho. Sente um nó na garganta. Seu corpo estremece ao se lembrar das últimas palavras de Carlos: — Se deseja mesmo se casar com a moça, decida de vez. Não a deixe esperando tanto tempo. Faça-a feliz. Ainda que um dia descubram que fizeram a escolha errada.

Adalberto pega o rosto do filho, que está paralisado: — Pode chorar filho. Coloca para fora a dor que está sentindo. Um homem não deve ter vergonha de chorar, de expressar seus sentimentos de dor. — Caio o abraça e choram.

Glória, naquele instante, recebe Dalva. Em lágrimas a moça vai lhe perguntando: — Porque fez isso comigo, Glória?

Glória nada entende — Do que está falando? O que fiz?

Dalva — Eu não sabia. Não tinha certeza do amor dele por mim. Achei que era um sonho meu. Não, um pesadelo. Ao acordar, enxerguei a realidade: vocês já estavam casados. Mas vi nos olhos dele, senti no calor de suas mãos em meu corpo e nas batidas de seu coração que ele também me quer.

Glória ainda atordoada — De quem está falando?

Dalva — Ainda me pergunta? Estou falando de mim. Do meu amor. Do homem que amo e você me roubou. Você sabia que eu era…

Glória, com agonia — Por favor, Dalva. Não quero ouvir mais nada. Já sei o que está dizendo — faz pausa, engolindo o choro. — Se em algum momento você desejou ser minha amiga de verdade, respeite minha dor, o que estou passando. Não quero pensar em nada do que está acontecendo com você.

Dalva — E o que estou passando? Os meus sentimentos onde ficam? Eu sonhava ser feliz ao lado do homem que amo, construir uma família com ele. Você destruiu tudo, roubando-o de mim. E ainda diz que não se importa comigo?

Glória se dirigi à porta. A voz quase não sai: — Vá embora, por favor. Não volte nunca mais aqui. Foi comigo que Caio se casou e nada irá mudar agora. Pelo menos quanto a mim. Se você o ama, é melhor se conformar, porque eu também o amo, e muito, com amor igual ao que ele tem por mim, sua escolhida para esposa. Caio era livre para fazer sua opção.

Dalva fita-a, em silêncio. Seus olhos marejaram enquanto Glória acrescenta: — Não acredito que ele tenha por você tanto amor quanto pensa, pois ele não me escolheria. Sei bem o que estou dizendo. Caio podia ter-me deixado no altar. Teria motivos para cancelar nosso casamento, mas não o fez, o que prova quanto me ama e… — interrompe as palavras, vendo a outra sair em disparada. Fecha a porta, senta no chão e chora.

Na sala de Adalberto. Caio também sentado no chão, lamenta: — Estou com medo do que pode vir pela frente. Eu acho que fiz a escolha errada.

Adalberto — Você e sua mulher não são responsáveis pelo que seu primo fez, muito menos pelo que aconteceu à família dela.

Caio — Então, diz de quem é a culpa, e porque tem de ser desse jeito? Será que tudo vai dar errado com quem amo.
Adalberto, intrigado — O que você está dizendo tem a ver com aquela moça de ontem? Percebi como se olharam e a preocupação dela, toda delicada, desejando saber como você estava.

Caio — O senhor acredita em reencarnação? Acha que eu possa ser meu avô Neto?

Adalberto — Claro que não creio nessa bobagem. Porque meu pai reencarnaria em você?

Caio — Ele amou duas mulheres. Não foi feliz com nenhuma. O senhor me contou. Uma nem preciso dizer quem é. A outra… Bem, porque não me contou quem era?

Adalberto — Por ser uma história triste. Ele preferiu viver sozinho a voltar para minha mãe depois que acabou a guerra.

Caio — E nunca se conformou com a morte da outra, o que poderia ter sido evitado. A verdade, ao invés de separá-los, acabou unindo-os na morte. Eram filhos do mesmo pai.

Adalberto, boquiaberto. — Como soube disso? Nunca contei a ninguém. Eu e sua avó decidimos enterrar essa história com ele.

Caio — Seu nome era Glória Maria, mas todos a chamavam de Glorinha.

Adalberto — Quem lhe contou todas essas coisas? Sei que não encontrou o diário dela, pois sua avó o queimou, antes de morrer.

Caio levanta e senta na cadeira em frente do pai. Adalberto, surpreso, espera a resposta. — Eduardo Lacerda, o senhor sabe quem é?

Adalberto — Não tenho a menor ideia.

Caio — É o homem com quem Glorinha se casou para continuar morando na fazenda enquanto esperava meu avô. Ele acredita que eu seja Neto e que minha mulher seja Glorinha, ambos reencarnados, vivendo o amor de antes. Quer saber mais quem é ele? O avô materno de Glória — sorri para esconder a tristeza. — Como esta vida é engraçada. Até parece que vivemos em círculos, girando em torno das mesmas pessoas. O destino, posso assim dizer, decidiu unir nossa família por alguma razão especial, que desconheço. Glória herdou o nome da avó, como eu o do meu avô. Pelo que ele também disse, somos idênticos a Neto e a Glorinha. Estive na fazenda onde vovô nasceu. Visitei a sepultura dos que morreram lá. Meu bisavô, pai de Helena, foi sepultado na mesma cova da filha. Quem o enterrou foi meu bisavô paterno. O senhor nunca me falou o nome dele. Por quê?

Adalberto — Não tenho ideia de como se chamava.

Caio mostra o bilhete que ainda tinha em mãos: — O mesmo nome do meu primo: José Carlos. Se a história que ouvi for real, tudo está se repetindo entre mim, Dalva e Glorinha. A única coisa que não entendo é porque meu primo se suicidou se não nos lembramos do passado. Que razão teria meu bisavô para nascer como meu primo e não como meu pai ou de Glória? E quem foi o senhor? E os pais de Glória? Quem foram eles, em nossa família, no passado? Será que nasceram apenas para viver, a ponto de o pai preferir a morte a aceitar um filho diferente dele?

Adalberto — Não diga bobagem. Claro que o pai o aceitou. Do contrário, o menino não teria morrido em seus braços. Ele escolheu a morte de ambos para se tornarem iguais por dentro e por fora. Das cinzas, nada os separam. E não venha basear sua existência na dos outros, nem na de seu avô. Você não é ele. Tudo não passa de coincidência. E não tem como provar o contrário. E depois, você sabe qual é a minha opinião a respeito do que está acontecendo com você. Não quero que pense que o destino o colocou diante de duas mulheres, e que não será feliz com nenhuma delas. Você era livre para escolher o caminho que escolheu. Ainda o é para optar pelo certo, se constatar que fez a opção errada. Um homem não pode se prender a algo que não vai favorecê-lo. Cabe-lhe encontrar o caminho seguro que procura, ou deixar acontecer o que tiver de acontecer. Tudo que pertence ao homem dele será.
Caio fica em silêncio. Adalberto faz pequena pausa e prossegue: ─ A minha trajetória, por exemplo, nunca foi perfeita, e sempre acabo aceitando o que me é oferecido. Desde criança tive de aprender a respeitar os sentimentos alheios. Não foi fácil eu saber que era filho de um homem que nem sabia da minha existência; continuar chamando de tia à mulher que era minha mãe biológica; amar, como meus pais, aqueles que pensavam, a todo instante, no meu bem-estar e poderiam se sentir magoados ao descobrirem que eu sabia da verdade. Os dois não me quiseram ver crescendo como um bastardo, sem o nome de um pai, como o simples resultado de algumas horas de prazer, embora minha mãe acreditando que fosse aquela a única maneira de viver um grande amor. E não é fácil, ainda, ter em mente que eu vivo porque meu pai morreu no meu lugar, me salvando. Quanto a mim, não dei a ele o direito de saber quem eu era, ainda que o tenha ouvido se lastimar que partiria sem deixar uma semente, nem um herdeiro sequer. E eu sabia que isso não aconteceria, pois estava ali, diante dele, olhando-o nos olhos, ouvindo cada palavra que ele me dizia. E não foi difícil esperar por um filho que só veio depois de quatro meninas, a quem eu pudesse dar o nome de meu pai, acreditando que sua vida seria diferente da que eu e ele fomos obrigados a viver. — toca o filho nos ombros. — Eu quero que com você seja diferente, filho. Não deixe de aproveitar cada emoção que lhe for oferecida. Curta cada momento como se fosse o último, sem medo de viver, de ser feliz, porque não sabemos como será o dia de amanhã, que poderá não existir. A única certeza da vida é a morte. Eu aprendi tudo isso depois do falecimento do meu pai, que me fez renascer. Sem saber quem eu era, Neto me salvou. Morreu sem ter a chance de saber que ele continuaria através de mim. E vou lhe dizer agora, o porque não contei ao meu pai quem eu era. Não foi apenas porque sua avó me pediu. Foi por mim mesmo. Imaginei que ele não me amaria. Que estava apenas preocupado com sua existência chegar ao fim sem um herdeiro para que a continuasse. Enquanto eu passava os dias ao lado dele, na guerra, pensava numa única coisa: viver. Viver muito, para ter vários filhos, de preferência meninos, a fim de que acompanhassem os meus passos, ao lado de meu pai. Quando ele estivesse bem velhinho, no leito de morte, eu lhe apresentaria cada um, com um único objetivo: deixar que morresse com remorso por ter tirado de mim o direito de ser meu pai, quando decidiu não voltar para minha mãe, apesar de amá-la. Preferindo viver a dor da irmã.
Caio não contém a emoção e chora. O pai continua: ─ Nada é como imaginamos ou planejamos. Quando vi a morte diante dos meus olhos, e meu pai indo em meu lugar, descobri que meus planos haviam sido em vão; que não mandamos nem em nós. A morte é quem decide quanto tempo devemos viver, e os dias as vezes se tornam longos, pelo remorso que sentimos de não ter feito o certo, na hora em que deve fazer. E a nossa existência irá continuar nos seus filhos, como a de meu pai continua em mim — apoia a mão no peito do filho — Seu avô vive sim, filho, em você, por ser o único neto, dos muitos que imaginei dar a ele. E repito: o que está acontecendo com você é apenas coincidência. Talvez para que, em nenhum momento, esqueça quem foi Neto: Um homem que deu a vida, duas vezes, para o mesmo filho. Agora, vá para casa descansar um pouco mais. Está precisando. Faça companhia à sua mulher. Ela é tão inocente quanto você nisso tudo. Ela precisa de alguém forte ao lado, neste momento tão difícil que estão passando.
Caio força um sorriso. Aconchega ao pai e sai. Na rua, anda devagar, pensativo.

Em casa. Glória prepara a refeição. Esboça um sorriso tímido ao vê-lo chegar e apoiar, com o ombro, na soleira, observando-a, sério.

Glória — Não esperava que viesse a essa hora. Ainda não terminei o almoço. Comecei agora. Vai demorar um pouco.

Caio — Ainda está cedo. Meu pai achou melhor eu vir lhe fazer companhia.

Glória percebe que ele está tenso: — Aconteceu alguma coisa a mais?

Caio vai à mesa, despeja água na caneca e suspira, antes de tomar um gole. Não tem pressa de responder: — Vai acabar tudo bem. Vamos acreditar que sim. Apesar que tenho o pressentimento de que vai acontecer algo pior. Talvez tenhamos de consertar alguma coisa errada entre nós, sem falsidades. Sabemos o resultado do que aconteceu com seus pais por causa das mentiras. Bom, sabe qual era o nome da outra mulher por quem meu avô se apaixonou, cujo fruto desse amor é meu pai?

Glória — Não falamos sobre isso ainda.

Caio — Não quero me basear na história que seu avô nos contou. Vou agir como meu pai, que acredita ser casualidade. — Faz uma pausa e continua: — Peça para àquela sua amiga não retornar aqui. Com você que me casei. É com você que pretendo ser feliz. Ou será que nosso amor é pecado, como o de Neto e Glorinha? Pois tudo começou errado entre nós.

Glória, desapontada, olha o chão. — Como era o nome dela? Da outra?

Caio — Dalva de Lucas.

Em silêncio, ela o encara nos olhos. Caio tira o bilhete do bolso e pedi que leia.

Ela nada entende: — Quem escreveu isso?

Caio — Meu primo, José Carlos. Ele se suicidou depois do nosso casamento. Lembra-se da impressão que teve? Que ele…

Glória — Por favor, não me recorde isso — e deprimida, chora.

Caio ameaça abraçá-la. Glória o evita. — Será que poderia me levar até a fazenda do meu avô? Quero saber como minha mãe está?

Caio – Vou avisar o pai e saímos em seguida.
Assim que fica sozinha, Glória rele o bilhete, aperta-o, entre as mãos e chora.

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